Quilombos urbanos: a resistência silenciosa da capoeira em Belém

Em Belém, núcleos da arte marcial proliferam longe do centro da cidade, em locais onde, quase sempre, as políticas públicas não conseguem alcançar

O Liberal

No bairro da Agulha, distrito de Icoaraci, uma quadra de escola pública — com telhado furado e piso castigado pelo tempo — se transforma todos os fins de semana em espaço de encontro, movimento e escuta. É ali que Evandro José, mais conhecido como Carajás, conduz as rodas do grupo de capoeira Balanço do Dendê, criado por ele com a benção de seu mestre, Meninão, em novembro de 2024. Com mais de 20 anos dedicados à capoeira, ele segue firme num projeto que, sem patrocínio ou infraestrutura, oferece muito mais do que atividade física, oferece sonhos.

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“Trabalhar com crianças e adolescentes da periferia através da capoeira é uma missão que vai muito além do jogo, do berimbau e da roda. É estar presente na vida deles como um ponto de apoio, de escuta, de disciplina e de esperança”, resume Carajás, que concilia essa atuação com os trabalhos de bombeiro civil e mototáxi, além de acompanhar de perto a realidade de cada um dos cerca de 20 alunos.

A realidade de Icoaraci que ele conhece de perto é dura. Fome, violência doméstica, evasão escolar, ausência paterna, aliciamento pelo tráfico. Muitos dos jovens que chegam ao grupo trazem no corpo a rigidez do medo e na voz o silêncio do temor. “Às vezes, é na capoeira que eles encontram o primeiro espaço onde são ouvidos, respeitados e incentivados a sonhar”, diz.

image Carajás apresentando instrumentos musicais utilizados na Capoeira a seus alunos (Arquivo Balando do Dendê)

Histórias

Carajás se refere a histórias que viu de perto durante sua caminhada como professor. O jovem que queria abandonar o tráfico e encontrou na roda um refúgio e uma nova identidade; a criança que ia apenas pelo lanche, mas se encantou com o canto do berimbau e hoje dá aula para os menores; o menino que superou a timidez para cantar ladainha em público; a menina que reencontrou a autoestima depois de anos de bullying. Há também as ocasiões em que foi preciso levá-los de volta para casa, intervir em brigas, conversar com mães, avós, conselhos tutelares. “Já fui chamado de ‘pai de capoeira’. Pra muitos, era só eu que aparecia na escola quando tinha problema”, conta.

A força desse trabalho se explica pela própria história da capoeira, cuja origem se mistura às estratégias de sobrevivência dos africanos escravizados no Brasil. O nome vem das clareiras de mato ralo — chamadas capoeiras — onde os fugitivos emboscavam os capitães do mato. Nos quilombos, a luta era mortal. Nas senzalas, se disfarçava de dança, sob os olhos dos senhores de engenho. A ginga, base de todo movimento da capoeira, nasce dessa necessidade de esconder o combate dentro da coreografia.

Capoeira em Belém

image Alunos posam para fotografia após treinamento na Escola Maria Madalena (Arquivo Balando do Dendê)

Com o tempo, o que era resistência virou também celebração e pertença. Hoje, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e do mundo, a capoeira segue cumprindo esse papel. “A capoeira na periferia é resistência e transformação. É ferramenta de inclusão, educação e esperança”, resume Carajás. Por isso, no mês de julho, quando se comemora o Dia Mundial da Capoeira, o que se celebra vai muito além do jogo. Celebra-se a persistência daqueles que, como Carajás, mantêm vivos os quilombos contemporâneos espalhados pela periferia de Belém.

Cada grupo de capoeira, como o Balanço do Dendê, é um centro de resistência. Em Belém, esses núcleos proliferam longe do centro da cidade, quase sempre em bairros esquecidos pelas políticas públicas. As rodas, encontros periódicos entre diferentes grupos, são formas de manter a comunicação e o intercâmbio — tal como faziam os quilombos do período colonial, por meio de tambores, apitos e redes de afeto e comércio.

A capoeira também expandiu horizontes para Carajás. Por meio dela, ele conheceu outros estados do Brasil e chegou até a Europa. Hoje, tenta plantar nos alunos a vontade de também sonhar com outras paisagens. “Falo muito sobre isso com eles. Que é possível viajar, conhecer outros lugares, ter um futuro diferente. Que a roda pode ser o começo de um caminho.”

Na quadra da Escola Estadual Maria Madalena, não há tatame, nem palco, nem iluminação. Mas ali se dança, se canta, se combate. Ali se sonha. E sonhar, neste pedaço de periferia, continua sendo um gesto de resistência.

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