A cada dois dias, cerca de um caso de intolerância religiosa é registrado no Pará
A média é feita a partir dos dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) de que, de janeiro a agosto de 2025, 128 ocorrências desta natureza foram computadas

A cada dois dias, cerca de um caso de intolerância religiosa é registrado no Pará. Essa média é feita a partir dos dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) de que, de janeiro a agosto de 2025, 128 ocorrências desta natureza foram computadas. Com relação a 2023 e 2024, no mesmo período, a Segup contabilizou 116 e 127 situações. Especialistas alegam que esse crime ocorre quando uma conduta deixa de ser opinião ou discordância teológica e passa a ferir a dignidade de pessoas ou grupos por causa de suas crenças ou práticas religiosas. Um episódio de intolerância recente ocorreu no dia 20 do mês passado, na vila do Apeú, em Castanhal, nordeste paraense. Dois homens desceram de um caminhão e, de forma repentina, destruíram a imagem de Nossa Senhora de Nazaré que ficava na “Pracinha da Santinha”.
Só nos primeiros oito meses deste ano, três pessoas foram presas por intolerância religiosa. Ainda conforme a Segup, de janeiro a agosto de 2023, uma pessoa foi detida pelo mesmo motivo, enquanto no ano passado ocorreram três prisões no mesmo período.
Renata Neves de Jesus Sousa, presidente da Comissão de Direito e Defesa da Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB-PA), explica que, do ponto de vista jurídico, a intolerância religiosa se configura quando há qualquer ato, gesto ou discurso que viole o direito de uma pessoa ou grupo de exercer livremente sua fé, manifestar suas crenças ou praticar seus cultos.
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“A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso VI, estabelece que a liberdade de consciência e de crença é inviolável e assegura proteção aos locais de culto e às suas liturgias. Portanto, toda conduta que cause constrangimento, ofensa, ridicularização, impedimento ou discriminação em razão da fé professada caracteriza uma violação a esse direito fundamental e pode configurar ato de intolerância religiosa”, afirma.
A imagem em destaque mostra Renata Neves de Jesus Sousa, presidente da Comissão de Direito e Defesa da Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB-PA). (Foto: Divulgação)
Segundo ela, a base da liberdade religiosa no Brasil está na Constituição Federal, que garante a inviolabilidade da liberdade de crença e de culto, além da laicidade do Estado, ou seja, a neutralidade estatal diante de qualquer religião. Para criminalizar a descriminalização por religiosa, existe a Lei nº 7.716/1989, conhecida como Lei do Crime de Racismo.
Além disso, a advogada lembra que o Código Penal também traz dispositivos importantes, como o artigo 208, “que pune o escárnio público por motivo de crença ou o impedimento de cerimônias religiosas”, e o artigo 140, parágrafo terceiro, que tipifica a injúria qualificada quando a ofensa decorre da religião da vítima. Também existe o Estatuto da Igualdade Racial, que se trata da Lei nº 12.288/2010, e que reforça o dever do Estado em proteger as manifestações religiosas de matriz africana e promover o respeito à diversidade de crenças.
Como identificar
Para explicar quais situações a intolerância passa a ser crime, Renata ressalta que é quando as atitudes ultrapassam o campo da opinião ou da discordância teológica e passam a atingir a dignidade de pessoas ou grupos. “Isso ocorre, por exemplo, quando alguém impede um culto, profere ofensas contra símbolos religiosos, ridiculariza práticas de fé em público ou discrimina alguém por causa da religião que professa. Também é crime a injúria com motivação religiosa, quando a pessoa é ofendida diretamente por sua crença. Nessas situações, aplicam-se os dispositivos do Código Penal e da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Racismo), com possibilidade de pena de detenção, reclusão e multa, dependendo da gravidade do caso”, detalha.
Durante o Círio deste ano, um grupo distribuiu panfletos dizendo que “não faz sentido colocar Maria como mediadora entre Deus e os homens” ou que “imagens e esculturas não servem para nada”. Renata conta que, nesse tipo de situação, há uma linha tênue entre a liberdade de expressão e a prática de intolerância religiosa. Tudo depende, portanto, do contexto, da forma como foi feita a abordagem e da intenção manifestada no discurso.
“Neste caso, a Constituição assegura o direito de toda pessoa expressar livremente suas convicções, inclusive discordar de outras crenças. Assim, manifestações de cunho teológico, quando feitas de forma respeitosa e sem intenção de ofender, podem estar protegidas pela liberdade de expressão. No entanto, quando essas falas assumem caráter de ataque, ridicularização, incitação ao desrespeito ou tentativa de deslegitimar a fé alheia, elas ultrapassam o limite da liberdade de expressão e podem ser enquadradas como ato de intolerância religiosa”, informa.
Punições
A advogada destaca que as penalidades variam conforme o tipo de conduta praticada. “O artigo 208 do Código Penal prevê pena de detenção de um mês a um ano, ou multa, para quem escarnece publicamente alguém por motivo de crença, impede cerimônia religiosa ou vilipendia objetos de cunho religioso, com aumento de pena se houver violência. Já a injúria qualificada por motivo de religião, prevista no artigo 140, parágrafo terceiro, pode resultar em pena de reclusão de um a três anos, além de multa”, pontua.
Renata afirma também que, quando a conduta se enquadra na Lei nº 7.716/1989, a pena também pode ser de reclusão de um a três anos, a depender da gravidade. “Importante ressaltar que, além da punição criminal, o autor do crime pode ser responsabilizado civilmente e condenado a indenizar a vítima por danos morais na esfera civil”, acrescenta.
Maior visibilidade do tema
Para Sousa, o Poder Judiciário brasileiro tem dado maior visibilidade e seriedade a casos de intolerância religiosa. De acordo com Renata, há decisões importantes que reconhecem a injúria religiosa e o vilipêndio de culto como crimes e determinam indenizações por danos morais às vítimas. Além disso, ela reforça que o tema tem ganhado atenção por parte dos órgãos públicos do Pará, instituições e da sociedade civil, com decisões importantes que reconhecem a injúria religiosa e o vilipêndio de culto como crimes e determinam indenizações por danos morais às vítimas.
“Um julgamento importante foi o reconhecimento, pela Lei nº 14.532/2023, de que a injúria com motivação religiosa é uma forma de crime de ódio, o que reforça a gravidade dessa conduta. Ainda assim, o país enfrenta desafios, especialmente porque muitos casos não chegam ao sistema de Justiça por medo, falta de informação, ou mesmo por tipificação errônea por parte do agente público ou pela naturalização da intolerância”, assegura.
“A liberdade de expressão é um direito fundamental e abrange também o debate religioso. As pessoas podem manifestar suas crenças, questionar dogmas e até discordar de outras religiões. O limite desse direito está no momento em que o discurso deixa de ser uma opinião e passa a ser uma ofensa, uma incitação ao ódio ou uma forma de humilhar pessoas por causa de sua fé”, continuou.
“O Supremo Tribunal Federal tem reiterado que a liberdade de expressão não protege o discurso de ódio nem a intolerância. Em outras palavras, a liberdade de dizer não é liberdade para agredir. Assim, críticas teológicas são legítimas, mas ataques pessoais ou coletivos com base em religião violam a Constituição e podem ser punidos penal e civilmente”, garante.
Denuncie
Por fim, para quem sofrer intolerância religiosa, advogada orienta que a primeira medida a ser tomada é registrar um boletim de ocorrência, relatando o fato com o máximo de detalhes possíveis, como, por exemplo, o local, data, autores, testemunhas e provas, que podem ser vídeos, áudios e prints.
Renata enfatiza que é necessário frisar à autoridade policial que se trata de um caso de intolerância religiosa, para que seja aplicada a legislação correta. A vítima, ainda conforme ela, também pode procurar o Ministério Público, a Defensoria Pública ou a OAB, que têm canais de atendimento e podem orientar sobre as medidas cabíveis. Em alguns estados brasileiros, inclusive o Pará, existem delegacias especializadas em crimes de discriminação e intolerância. Em Belém, a delegacia especializada de combate aos crimes discriminatórios e homofóbicos (DCCDH) no bairro da Campina.
Ela finaliza dizendo que o mais importante é não se calar, pois o silêncio reforça a impunidade. "Denunciar é uma forma de garantir não apenas os próprios direitos, mas também o respeito à diversidade religiosa que caracteriza o nosso país", diz Renata.
Discriminação
Lauro Sousa, Babá Minibu, vice-diretor da Confraria dos Olosun's do Pará, afirma que as religiões de matrizes africanas são rotuladas como algo utilizado para fazer o mal e isso fortalece o preconceito. “Não temos paz. Não fazemos o mal, ajudamos as pessoas. É como se tivéssemos voltado no tempo. Andamos reprimidos e temos que esconder a nossa identidade, o que não é justo”, afirma.
Para ele, os casos têm aumentado no país. “Quando vamos entrar no carro de aplicativo, o motorista diz que não pode nos levar. Existem lugares que não nos aceitam a caráter. O olhar da pessoa já deixa despido e diz tudo”, relata.
Segundo Lauro, a diferença no tratamento entre as religiões é histórica e tem relação com o racismo. “Desde a época da escravidão, há o preconceito. É o mesmo conteúdo, só que forma diferente”, conta.
Para que tenha o fortalecimento do respeito e a valorização das religiões, principalmente as africanas, Lauro espera que a lei seja cumprida rigorosamente. “Merecemos respeito de todas as formas, assim como as outras religiões. Também somos filhos de Deus”, argumenta.
Imagem vandalizada em Castanhal
A imagem da Virgem de Nazaré, que foi vandalizada no distrito do Apeú, em Castanhal, foi restaurada e recolocada na entrada do Santuário Nazaré. A imagem, confeccionada em fibra e com 3,8 metros de altura, foi totalmente restaurada por servidores municipais, com recursos próprios da prefeitura do município. O trabalho devolveu à comunidade não apenas o símbolo religioso, mas também um dos principais pontos turísticos do município. A praça, revitalizada em 2023, voltou a receber cuidados especiais e ganhou nova pintura, limpeza e iluminação.
O espaço é também um dos locais de apoio aos romeiros que seguem em caminhada rumo a Belém nos dias que antecedem o Círio de Nazaré. Por isso, a entrega da imagem, às vésperas da grande festa, reforça o sentimento de fé, união e esperança entre os castanhalenses.
Os suspeitos, que fugiram após o ataque, ainda são procurados pela polícia. Anteriormente, a Polícia Civil havia informado, em nota, que equipes da Delegacia de Castanhal seguem investigando o caso para identificar os responsáveis pelo ato de vandalismo.
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