STF decidirá briga tributária de uma década entre Estados e mineradoras
Decisão favorável às empresas significará extinção de fonte de recursos para Estados em meio à crise da covid, além do risco de ações judiciais movidas por mineradoras para tentar recuperar ao menos parte dos valores pagos

O Supremo Tribunal Federal (STF) pode encerrar no dia 14 de abril uma batalha fiscal de uma década entre mineradoras e os governos de Minas Gerais, Pará e Amapá. A corte vai julgar a constitucionalidade das taxas de fiscalização da exploração de recursos minerais, questionada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em nome do setor. Uma decisão favorável às empresas significará a extinção de uma fonte de recursos para os Estados em meio à crise agravada pela pandemia, além do risco de ações judiciais movidas por mineradoras para tentar recuperar ao menos parte dos valores pagos.
A indústria alega que as leis estaduais criaram um "imposto mascarado de taxa", em busca de receita. Em recentes julgamentos envolvendo taxas similares, o STF decidiu que os Estados têm competência para criá-las, mas julgou inconstitucional o valor cobrado quando ele não é proporcional ao custo da fiscalização da extração dos recursos naturais. De acordo com especialistas, os recursos de taxas só podem ser usados para a finalidade determinada em sua criação, e cobrar a taxa de acordo com a produção das mineradoras seria desproporcional.
O efeito dominó de criação de Taxas de Controle, Monitoramento e Fiscalização das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Aproveitamento de Recursos Minerários (TFRM) pelos Estados a partir de 2011, seguindo a criada em Minas Gerais, é atribuído por juristas à demora do governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em apresentar um projeto de lei aumentando o valor da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o royalty da mineração. Criada para pressionar pelo aumento, a TFRM acabou mantida mesmo após a mudança na alíquota da CFEM, em 2017.
A falta de equivalência entre o valor cobrado do contribuinte e o gasto no exercício da fiscalização pelos Estados será o principal argumento da CNI nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 4785 (Minas Gerais), 4786 (Pará) e 4787 (Amapá). A primeira e a última, pautadas para o dia 14, devem estabelecer um precedente para o caso do Pará.
A sócia da área tributária do Azevedo Sette Advogados, Clarissa Viana, explica que a arrecadação de impostos como o IPVA é totalmente desvinculada e pode ser aplicada onde os Estados quiserem. Já o dinheiro levantado com uma taxa deve ser usado para custear a atividade a que ela se destina - no caso específico, fiscalizar a mineração. Caso o STF considere a taxa mineral inconstitucional, nada impede que os Estados, através do Legislativo, criem novas taxas, desde que respeitem a regra da proporcionalidade. "A discussão principal é: por que o Estado cobra a taxa com base na produção mineral, se o custo para fiscalizar não está ligado a isso?", diz.
Precedente favorável
Alguns julgamentos recentes da Suprema Corte em matérias similares criam precedentes favoráveis à tese das mineradoras. Em abril de 2020, foi reconhecida a inconstitucionalidade da Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização Ambiental (TFPG), do Rio de Janeiro. A base de cálculo (barril de petróleo extraído) foi considerada incongruente com os custos da fiscalização. Em junho, o Plenário do STF suspendeu a Taxa de Fiscalização de Recursos Hídricos (TFRH) do Pará, repetindo o ocorrido em dezembro de 2019 na ADI nº 6.211/AP, em que declarou ilegítima a Taxa de Exploração de Recursos Hídricos do Amapá, com base no mesmo argumento.
A CNI deve apresentar cálculos reforçando a ausência de equivalência entre o valor cobrado das mineradoras e o custo da atividade de fiscalização pelos governos. O superintendente jurídico da entidade, Cassio Borges, aponta que um desfecho positivo abre caminho para pleitos individuais.
"Em regra, os efeitos da decisão de inconstitucionalidade retroagem. Excepcionalmente a Corte modula isso. Em princípio, a CNI espera que haja efeito retroativo, a permitir que eventualmente seja devolvido o valor cobrado em excesso", diz.
Indefinição
Apesar dos precedentes favoráveis, a situação está indefinida. O STF chegou a iniciar o julgamento virtual do caso em outubro passado e, até a interrupção, por um pedido de destaque do ministro Luiz Fux, havia seis votos a favor da constitucionalidade da taxa. Eles incluíam o do relator, ministro Edson Fachin, que considerou a base de cálculo adotada pela lei mineira (a quantidade de minério extraído) razoável. Votaram pela invalidade do tributo os ministros Marco Aurélio, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes.
O pedido de destaque deve levar o caso à estaca zero, mas o governo mineiro peticionou para que os votos sejam mantidos e o julgamento retomado de onde parou.
Apesar de estar pautada para o dia 14, a ação corre o risco de ter seu desfecho postergado por dois fatores. O primeiro é o de que o novato ministro Kassio Nunes Marques pode pedir vista para se inteirar melhor do assunto - ele é relator da ADI do Pará. Além disso, está marcado para o mesmo dia o julgamento dos recursos contra a decisão do ministro Fachin que anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Lava Jato no Paraná.
Em março, Pará elevou cobrança da taxa mineral no Estado
No início de março, o Governo do Pará editou um decreto elevando as alíquotas relativas à extração de produtos como níquel, cobre e minério de ferro, commodity que é o carro-chefe da mineradora Vale. A empresa tem no Pará duas de suas principais minas: Carajás e S11D. Para o minério de ferro, a taxa saiu de 1 para 3 Unidades de Padrão Fiscal - UPF-PA, cotada a R$ 3,7292 por tonelada.
Levando em conta a produção da Vale no Estado em 2020, de 192,3 milhões de toneladas, o pagamento do tributo pela mineradora triplicaria com a nova taxa, saindo de R$ 717 milhões para R$ 2,2 bilhões por ano. A título de comparação, entre outubro e dezembro do ano passado, a Vale teve lucro de R$ 4,8 bilhões. Procurada, a mineradora não comentou.
O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) disse que "recebeu com surpresa" a alteração das alíquotas pelo governo do Pará. A entidade defende que a taxa é inconstitucional e que não houve qualquer alteração nas operações que justificasse a elevação do valor cobrado. Segundo o instituto, a legislação estadual vigente determina que a alteração das alíquotas só poderia acontecer em 2031. O Ibram afirma ainda que a alta não pode incidir em 2021, já que é inconstitucional cobrar aumento de tributo no mesmo exercício financeiro.
Em 2012, ano seguinte à criação da taxa, a Vale chegou a registrar uma provisão de R$ 294 milhões no balanço do terceiro trimestre relativa ao pagamento. Logo em seguida, chegou a um acordo com o Governo do Pará, que reduziu o valor cobrado a um terço. No formulário 20-F deste ano, enviado ao órgão regulador do mercado americano, a Vale diz que vários Estados brasileiros, incluindo Minas Gerais, Pará e Mato Grosso do Sul, impõem a TFRM sobre a produção mineral.
O recente aumento da taxa mineral paraense está relacionado com uma histórica insatisfação de sucessivas gestões do Governo do Estado em relação à Vale, que tem no atual governador Helder Barbalho um novo episódio. A relação tensa vem desde o governo de Almir Gabriel (PSDB), quando a promessa da construção de um conjunto habitacional não foi cumprida pela empresa ao Estado, que também viu o Porto de Itaqui, no Maranhão, ser construído para escoar o minério paraense, em detrimento de pontos estratégicos e calado suficiente no Pará, como o Projeto do Porto de Espadarte, em Curuçá. No governo de Ana Júlia Carepa (PT), inclusive com presença em eventos oficiais e pressão do então presidente Lula, a prometida siderúrgica da Vale em Marabá também não saiu do papel. O tema voltou a ser um dos pontos cobrados pelo ex-governador Simão Jatene (PSDB), que também levantou a construção de uma ferrovia em conjunto com chineses pela Vale. Nenhum dos projetos, no entanto, foi concretizado, assim como a verticalização mineral no Estado, tema cobrado pelas gestões anteriores e também pela atual de Helder Barbalho, que voltou à carga com o projeto de uma siderúrgica e da ferrovia.
Em 2019, logo no início do mandato de Helder Barbalho, a empresa assinou um protocolo de intenções para apoiar a estruturação financeira de uma laminadora de aço em Marabá pela China Communication Construction Company, mas o projeto não saiu do papel. Há ainda a expectativa de instalação no Estado de uma unidade da Tecnored, produtora de ferro-gusa de baixo carbono (gusa "verde").
No dia 26 de março, o procurador-geral do Estado do Pará, Ricardo Sefer, criticou a Vale em transmissão ao vivo organizada no Instagram pelo jurista e presidente do PSD no Pará, Helenilson Pontes. "A visão que o governo (do Pará) tem da Vale é muito ruim. É uma empresa que muito tira e pouco deixa", disse. A companhia extrai quase dois terços de seu minério de ferro em solo paraense.
Um dos criadores da TFRM, em 2011, Pontes defende que a taxa é vinculada ao poder de polícia do Estado, que não se esgota com a fiscalização. "É o poder de atuar em todas as esferas impactadas pela atividade mineral", afirma. A Constituição, diz o jurista, admite taxas de serviço e de poder de polícia, caso da taxa mineral. Ele defende que os recursos arrecadados podem ser destinados a investimentos públicos em saúde, educação, saneamento e outras áreas sociais, desde que para mitigar efeitos nocivos da mineração.
A reportagem tentou ouvir um porta-voz do governo do Pará sobre a taxa por mais de duas semanas, sem sucesso. A Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme), respondeu por e-mail que o decreto nº 1.353, que elevou a taxa, deve ser cumprido por todas as empresas mineradoras do Estado do Pará. O motivo do aumento, afirma, é o alto custo de fiscalização do setor. Segundo a secretaria, o intenso tráfego de minério para o Porto de Vila do Conde gera um alto custo de manutenção das estradas.
A Secretaria de Fazenda de Minas Gerais afirmou que não existe qualquer iniciativa ou proposta por parte do governo mineiro para o aumento da TFRM. Em relação à disputa jurídica sobre as taxas, preferiu não se manifestar enquanto a questão estiver sob análise do Supremo. O governo do Amapá não retornou o contato feito pelo Estadão/Broadcast.
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