Dia de Mário Quintana: leitores e autores celebram a arte de ser passarinho
Neste 30 de julho, celebra-se um dos maiores poetas do Século 20, um tradutor do cotidiano em imagens literárias que encantam gerações

Mário Quintana não é só um poeta, ele próprio virou um poema. Os anos passam, e a imagem desse autor em fotos, já idosinho, franzino, sorrindo ou circunspecto, olhando para alguma direção no tempo, sugere que a fragilidade aparente pode, de uma hora para outra, surpreender. E muito. Mário lia o mundo, lia com a pele, para sentir tudo e, então, dar vida a poemas intensos e não necessariamente extensos, tanto que esse poeta virou dia: em 30 de julho, celebra-se o Dia de Mário Quintana. É apenas uma data, uma efeméride, mas server para instigar as pessoas a descobrirem ou reafirmarem a poesia desse gaúcho nascido em Alegrete (RS), no dia 30 de julho de 1906 e que faleceu em 5 de maio de 1994, aos 87 anos.
Quintana atuou em diversas profissões, a partir da década de 1920, quando residiu em Porto Alegre (RS). Foi desempacotador de livros na Livraria do Globo e redator no jornal "O Estado do Rio Grande". O primeiro livro, "A Rua dos Cataventos", veio a público em 1940, e ao longo de sua vida Mário Quintana produziu mais de 20 obras. Entre 1968 e 1980, ele deu vida a "Caderno H" (1973), "Apontamentos de História Sobrenatural" (1976) e "A Vaca e o Hipogrifo" (1977). Foi tradutor de obras de autores como Virginia Woolf e Marcel Proust. Na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre (RS), o público confere um dos quartos habitado pelo poeta e espaços expositivos sobre a obra literária de Mário Quintana. Autor que ao abordar a natureza reúne no seu universo literário pessoas, animais, plantas, rios e mares e outros itens de ecossistemas, ou seja, o mundo como um todo.
A genialidade desse autor pode ser constatada, por exemplo, em dois de seus poemas: "Poeminha do Contra" - "Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho, / Eles passarão... / Eu passarinho!"; "Seiscentos e sessenta e seis (O Tempo)" - "A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa./ Quando se vê, já são 6 horas: há tempo… / Quando se vê, já é 6ª-feira… / Quando se vê, passaram 60 anos! / Agora, é tarde demais para ser reprovado… / E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade, / eu nem olhava o relógio / seguia sempre em frente… / E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas".
Estética cativante
Entre os admiradores da obra de Mário Quintana, referência para gerações de leitores e autores, está Paulo Nunes, professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e da Universidade da Amazônia (Unama), pesquisador de literatura, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, poeta e ensaísta. "Quintana, no meu entendimento de leitor, é um poeta-cronista. 'Formado' nas astúcias da alquimia, quando algo simples lhe cai nas mãos, vira metáfora, poema", diz ele.
Paulo ressalta que Mário Quintana filiou-se a uma corrente modernista do sublime. " Um poeta-cronista que levou o cotidiano as últimas consequências. Quintana soube, como poucos de sua geração, chamar leitores para a conversa. Uma conversa lírica, suave e bem humorada. O elemento surpresa faz parte de sua estética cativante". Paulo Nunes diz serem muito os poemas de Quintana "que admiro e admito como meus (os leitores às vezes somos possessivos)". "Mas vou destacar 'De gramática e de linguagem'. É mais que um manifesto de poesia; é uma confissão filosófica do conviver e aprender com e pela linguagem...", pontua o professor.
O próprio Paulo rende-se à estética cativante de Quintana. Ao ser perguntado sobre quem atravanca os caminhos, como dito no "Poeminha do Contra", Nunes responde: "Os que atravancam caminhos, na experiência humana, são muitos; pode ser uma dor de cabeça, um adjetivo incômodo, um vizinho barulhento. Mas por hora, para mim, os 'atravancadores da hora' são os fascistas".
Para Paulo Nunes, além de Quintana, outros poetas e poetisas marcaram a trajetória das letras brasileiras e têm obras que merecem ser conferidas por quem gosta de construções literárias: "Mário Faustino, Conceição Evaristo, Cecília Meireles, Adalcinda Camarão e Eneida. Drummond, Mário de Andrade e Bruno de Menezes; Adélia Prado e Roberta Tavares. Esta lista pode ficar sem Max Martins e Marcilio Caldas Costa? Essa moça Giselle Ribeiro... e aquela outra Ana Cristina César... eita, Baudelaire".
Maravilhas
E o "Poeminha do Contra" também ecoa junto à poetisa paraense Rosângela Darwich, psicóloga, psicoterapeuta e professora de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura, na Unama. Aqueles que passarão apresetam-se assim, segundo essa autora: "São todos aqueles que violentam a pureza das palavras, dizendo 'honestidade' ou 'verdade' com significado literalmente oposto, e que inclusive traduzem 'amor' pelo mais profundo desprezo e ódio pelas pessoas, pela natureza e pela vida. Eles passarão". "Ler Mário Quintana é uma forma de manter vivas a nossa leveza, a nossa dignidade e a nossa coragem – voamos, passarinhos", acrescenta.
Esse voo de Rosângela com a obra poética de Quintana "é próxima e antiga". "Gosto de pensar que começou quando eu era, no máximo, adolescente, com 'Velha História'. O início é assim: “Era uma vez um homem que estava pescando, Maria”. Gostei muito de ser e de não ser essa Maria. Fiquei encantada com a delicadeza daquelas palavras e não me conformava com o final. Acho que esse não me conformar fazia com que eu gostasse mais ainda", ressalta Rosângela.
Para ela, não há qualquer dúvida sobre o valor literário dos escritos de Mário. "
Vale a pena ler tudo o que ele escreveu. Ele consegue chamar para si a criança que existe em nós e oferecer o que ela mais precisa: maravilhas. Por exemplo, ele começa um poema ("Soneto II") com 'Dorme, ruazinha...', passa por imagens profundamente tocantes, como 'As estrelinhas cantam como grilos...', e mais uma vez termina lembrando da morte. Assim, nosso próprio percurso é banhado de encantamento".
Rosângela considera que a obra de Quintana serviu de referência literária para ela. "Por causa do peixinho que acompanhava aquele homem de tantas mãos (“o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho” - em "Velha História"). Acredito que poetas desejam ter muitas mãos para tocar a beleza com letras", diz a poetisa.
Nos anos 1980, Rosângela Darwich lançou os livros “Quando Fernando Sétimo Usava Paletó” e “Levasse as Coisas na Flauta”. Depois de 30 anos, ela retornou com “Há Horas”, seguido por “Tua Voz a Lápis”, “AniMais: rimas, rugidos, trinados” e “Rimas Falsas”. "São, ao todo, seis ou sete livros de poesia. O penúltimo, “AniMais”, é especialmente voltado ao público infantojuvenil", acrescenta.
Essa autora tem em "Canção de barco e de olvido" um de seus poemas prediletos de Mário Quintana, cujas últimas estrofes para onde os versos todos se dirigem dizem: “Que eu vou passando e passando, / Como em busca de outros ares... / Sempre de barco passando, / Cantando os meus quintanares... // No mesmo instante olvidando / Tudo o de que te lembrares”. "Do quintanares, termo criado por Manuel Bandeira para elogiar a poesia de Quintana, ao esquecimento (e não à lembrança) diretamente relacionado a uma outra pessoa, o que dizer de tamanha preciosidade?", diz Rosângela.
Confira:
De Gramática e de Linguagem
E havia uma gramática que dizia assim:
"Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta".
Eu gosto das cousas. As cousas sim !...
As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.
As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem com ninguém.
Uma pedra. Um armário. Um ovo, nem sempre,
Ovo pode estar choco: é inquietante...)
As cousas vivem metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
Para quê? Não importa: João vem!
E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso...João só será definitivo
Quando esticar a canela. Morre, João...
Mas o bom mesmo, são os adjetivos,
Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.
Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. luminoso.
Sonoro. Lento. Eu sonho
Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais:
Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...
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