Carimbó ecoa vozes de quem produz e vive esse símbolo cultural da Amazônia
Quando esse gênero musical completa 11 anos como patrimônio cultural imaterial do Brasil, a realidade para mestres e mestras, músicos e dançarinos expõe avanços e desafios para que o carimbó não perca suas raízes afro-indígenas

Assim como a flora, a fauna e outros recursos naturais da Amazônia precisam ser preservados, o carimbó como gênero musical e dança atrelados à identidade de quem vive nessa região também merece atenção estratégica do Poder Público e da própria sociedade como um todo, sob pena de sucumbir e não mais expressar a vida nesse bioma da Terra. Esse é o sentimento de muitos mestres, músicos, dançarinos e admiradores do carimbó neste mês de setembro, quando há 11 anos essa manifestação tornou-se patrimônio cultural imaterial do Brasil, em 11 de setembro de 2014, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Essa postura de quem produz e vive o carimbó se dá pelo fato de que, apesar de avanços a partir do reconhecimento por parte do Governo Federal, via Iphan, há necessidade de valorização das raízes desse gênero musical e dança amazônidas, ou seja, dos mestres e dos grupos que fazem o som original que embala gerações na Amazônia.
Protagonistas dessa manifestação no Pará ressaltam que a declaração em 2014 trouxe consigo o Plano de Salvaguarda do Carimbó, instrumento fundamental para a preservação desse bem cultural. Esse plano objetiva fomentar a circulação de mestres e grupos, garantir meios para sua locomoção, fortalecer redes de comunicação e incentivar a formação de novas gerações de carimbozeiros. Todo esse processo foi construído com intensa participação comunitária, fortalecendo o protagonismo dos mestres e guardiões da tradição, mas precisa ser fortalecido.
Isso porque, como dizem esses produtores culturais, ainda que na década, o carimbó tenha conquistado maior visibilidade dentro e fora do país, tenha sido impulsionada a criação de editais públicos voltados a mestres, festivais, encontros desses produtores culturais e maior atenção ao ensino dessa tradição, há necessidade de serem ampliados os recursos, serem garantidas condições dignas para os grupos e fortalecidos os espaços de transmissão de saberes diante das ameaças da homogeneização cultural.
O carimbó, como um bem cultural dinâmico, deve ser atualizado sem perder suas raízes. E essas raízes (mestres griôs) é que devem ser preservadas para que continuem sendo fontes de cultura e expressão (música, dança e modo de viver dos povos amazônidas) para as novas gerações.
Nosso território
Raimundo Piedade da Silva, o Mestre Ray, 67 anos, nasceu e mora no Distrito de Icoaraci, em Belém, e atua com o guardião do Templo do Carimbó, do ponto de cultura Coisas de Negro, espaço que existe há 35 anos. Ray está ligado ao Movimento Roda de Carimbó que contribuiu para o reconhecimento da manifestação cultural pelo Iphan. Mestre Ray possui 50 composições, a maioria de carimbó e outras tendo como base o curimbó (instrumento fundamental no carimbó).
As letras dele versam sobre a realidade, o dia a dia de comunidades, o racismo, a homofobia, a preservação do meio ambiente e outros. “O compositor de carimbó tem a missão de abordar essas questões dentro do nosso território amazônico”, pontua o mestre. Nesse momento em que a Amazônia está na pauta dos debates ambientais e políticos no mundo, o carimbó funciona, mais que nunca, como uma voz para falar das belezas dos ecossistemas naturais e das ameaças à integridade da região.
Para Ray, o carimbó raiz como manifestação cultural de gerações de amazônidas precisa ser inserido em grandes festivais dentro e fora do Pará. Ray destaca que os mestres precisam ter seu trabalho engrandecido nas comunidades, para que os saberes amazônico (o legado) sejam preservados.
Boiunas
Mulheres assumem o protagonismo no universo amazônico do carimbó, e, como resultado desse processo, nos dias 27, 28 e 30 deste mês, em Marapanim, no nordeste do Pará, será realizado o Festival Boiunas do Carimbó. O evento reúne mulheres pretas, pardas e LGBTQIA+ na cena cultural amazônica.
O Boiuna foi idealizado por mulheres carimbozeiras do interior do Pará, Amanda Rabelo e Aline Ribeiro, e será o primeiro com esse recorte fora da capital. A programação conta com oficinas, mesas de debate, feira criativa e o lançamento do álbum inédito “Boiunas do Carimbó na Amazônia”, com letras que atualizam o repertório tradicional do carimbó, sem abandonar suas raízes rítmicas.
Para a pesquisadora e comunicadora Roberta Brandão, o carimbó tem essa dimensão educacional, que proporciona o encontro de gerações. “Vide mestres como Damasceno e Lourival Igarapé (recém-falecidos), que dialogavam com a juventude. Suas últimas obras foram em parceria com artistas jovens, como Super Shock e Irís da Selva", pontua Roberta. Ela assina a pesquisa "Feminino Pau e Corda" ( dissertação para o Programa de Pós Graduação de Comunicação - PPGCOM- UFPA), sobre a presença feminina nessa manifestação cultural.
O público vai assistir, no festival, ao grupo Sereia do Mar, criado em 1994. Ele é o primeiro grupo de mulheres a gravar um álbum de carimbó. “Tem festival em que somos o único grupo de mulheres”, diz Amanda. Ela também destaca os desafios enfrentados. “Até hoje sofremos preconceito quando nos apresentamos. Em um festival, um homem foi em frente ao palco fazer sinal de negativo. Sorte que estava calma pq se não tinha jogado o curimbó nele”, contou brincando entre risos .
Apesar das barreiras, as mulheres amazônidas mantêm a resistência cultural, introduzindo, inclusive, novas narrativas no gênero. Em uma das faixas do novo álbum, Aline canta: “Santo Antônio, me dá uma namoradA”, apontando para o diálogo entre tradição e diversidade. Cerca de três mil pessoas deverão participar do Boiuna no Espaço Zimba, em Marapanim.
O festival deverá reunir mais de 3 mil pessoas no Bom Intento clube - Marapanim (sede) na PA - próximo ao Remígio Fernandez. Mulheres históricas na trajetória do carimbó: Tia Pê, Dona Magá, Nazaré do Ó, Nazaré Pereira, Ana Beltrão, Neire Rocha, Ângela Couto, Déia Palheta, Rose das Maracas e Dona Onete, entre outras. Informações aqui.
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