CONTINUE EM OLIBERAL.COM
X

Jogos de azar: Criminalização de influenciadores digitais é desproporcional, afirma advogado

Investigações exigem rigor técnico e cautela jurídica, defende especialista

O Liberal

Nos últimos anos, influenciadores digitais passaram a ser alvos frequentes de operações policiais no Brasil, especialmente por promoverem plataformas de jogos de azar online, como os populares “cassinos virtuais” e o chamado “jogo do tigrinho”. Para o advogado criminalista e professor universitário Filipe Silveira, a atuação estatal nesses casos revela uma estratégia tecnicamente equivocada, desproporcional e, em muitos aspectos, inconstitucional.

“Num passado recente, nós tivemos uma retomada das discussões públicas em torno das apostas, especialmente em relação às apostas online. E por conta dessa retomada, dessa discussão, também se viu a necessidade de se abordar algumas práticas que vinham ocorrendo dentro daqueles modelos que são globalmente utilizados, como as apostas online ou os jogos online. E o Estado vem tentando, de várias formas diferentes, regulamentar essas práticas”, explica.

VEJA MAIS

image Após 19 dias presa, influenciadora Noelle Araújo é solta: ‘Estamos só comemoração’
Noelle estava presa desde o dia 17 de abril, quando foi detida pela Polícia Civil durante a Operação “All In”, que investiga um esquema milionário de movimentação financeira ligado à exploração ilegal de jogos de azar em plataformas digitais

image 'Mago das Unhas', investigado por esquema milionário envolvendo jogos de azar, segue preso, diz Seap
O influenciador está detido desde o último dia 17 de abril, ocasião em que a influenciadora Noelle Araújo também foi presa. Ela ganhou liberdade nesta terça (6)

image Influenciadores presos no Pará movimentaram R$ 42 milhões com jogos ilegais, diz polícia
Um dos investigados, segundo a polícia, movimentou sozinho mais de R$ 20 milhões, sendo R$ 1,54 milhão em apenas 60 dias

“Entretanto, ao invés de se concentrar nas plataformas que oferecem os jogos, a repressão tem recaído sobre os influenciadores que fazem publicidade dessas atividades. Essa estratégia, do ponto de vista técnico, é muito discutível e muito criticável. Primeiro porque o direito penal não serve para isso. Segundo porque os próprios crimes que são atribuídos aos influenciadores, na sua grande maioria, não possuem uma conformação ou uma adequação própria entre aquilo que está sendo feito pelo influenciador e aquilo que está escrito na lei”, avalia o advogado.

Silveira destaca que esses criadores de conteúdo não estão explorando diretamente os jogos. “Não é ele que está executando o jogo. Ele, na verdade, está fazendo, quando muito, uma publicidade. E esta publicidade não pode ser confundida ou não deveria ser confundida com a ideia de explorar o jogo propriamente dito.”

Para Silveira, a contradição se torna mais evidente com a regulamentação recente das apostas esportivas de cota fixa, as chamadas bets. “As bets ou apostas de cota fixa, por exemplo, ligadas a apostas esportivas, estão regulamentadas e existem várias publicidades, inclusive regulamentos do próprio Estado, sobre essas questões. [...] Existe, efetivamente, alguma diferença entre uma coisa e outra?”, questiona.

Quanto ao fundamento jurídico da acusação, Silveira afirma que não há crime claro. “Essa questão, se a divulgação de sites de apostas configura crime, há alguma controvérsia aqui. Primeiro que o tipo penal mais próximo disso estaria na Lei das Contravenções Penais. E o verbo utilizado nas contravenções sobre jogos de azar, o mais próximo da divulgação, seria o verbo promover. Só que a conduta de promover não se confunde com a conduta de divulgar. Talvez numa interpretação mais extensiva, se pudesse considerar que o ato de promover abarcaria o ato de divulgar. Mas de qualquer forma nós não estaríamos falando de um crime propriamente dito, mas sim de uma contravenção penal”, explica.

Ele acrescenta que, com a regulamentação das apostas, o próprio ordenamento jurídico brasileiro mudou. “E não se afigura, como eu já mencionei, proporcional ou legítimo que o Estado brasileiro ao mesmo tempo esteja a regulamentar as bets, permitindo a sua ocorrência, e simultaneamente proibi-las. Então, na verdade, o que nós teríamos aqui seria um descumprimento da legislação ou dos regulamentos administrativos sobre as bets, mas sabendo que o Estado brasileiro as permite, não proíbe.”

image Noelle Araújo e 'Mago das Unhas' são presos novamente, durante operação da PC
A prisão foi confirmada assessoria de comunicação. Trata-se de uma operação que envolve a delegacia de crimes cibernéticos.

image Assim como Deolane, influencer paraense já foi presa ao lado da mãe em operação; relembre o caso
Influenciadoras são suspeitas de envolvimento em esquemas ilegais de jogos de azar

image Influenciadora Noelle Araújo deve sair da prisão nesta terça-feira, diz defesa
Noelle foi presa no início do mês de agosto, em Belém

Código de Defesa do Consumidor

Silveira afirma que a conduta atribuída aos influenciadores se aproxima mais de uma infração ao Código de Defesa do Consumidor do que de um crime. “É exatamente por isso que eu defendo que o tipo penal mais adequado para essa situação não é um tipo relacionado a jogo de azar propriamente dito. O que mais seria adequado a isso seria uma espécie de publicidade enganosa prevista no Código de Defesa do Consumidor. Quando se faz uma afirmação enganosa sobre um produto ou serviço, quando se omite um dado relevante”, aponta o criminalista.

Exagero nas investigações

Para ele, há um claro exagero na condução das investigações. “Na minha avaliação, há um certo exagero neste tipo de investigação. Um exagero, inclusive, que torna absolutamente desproporcional à conduta dos influenciadores com as medidas que estão sendo tomadas, por exemplo, prisão preventiva porque o influenciador utilizou a internet ou continuou a utilizar a internet, ou proibição de utilizar a internet, o que a toda evidência muito se assemelha a uma mordaça que não se pode agora nem mesmo se dar a possibilidade de a pessoa publicamente vir se explicar ou criticar aquilo que está sendo feito contra ele.”

A origem dessa desproporcionalidade, segundo o advogado, está na dificuldade do Estado em lidar com um fenômeno novo. “Esta desproporção é muito fruto do fato de nós estarmos diante de um fenômeno novo, que é a utilização da internet para a promoção dessa atividade, o que causa uma certa insegurança no próprio Estado sobre como lidar com a questão. E por isso, ao invés de se buscar uma investigação mais adequada ou mais necessária dentro de uns limites mais claros, o Estado acaba lançando mão dos meios mais fortes que tem. Então isso explica um pouco o que está acontecendo, explica a atuação estatal, mas muito embora explique, na minha opinião não justifique. Para mim, está muito claro que existe uma desproporcionalidade.”

Presunção de inocência

Outro ponto sensível destacado por Silveira é o desrespeito à presunção de inocência, agravado por declarações públicas de autoridades policiais. “Autoridades policiais que se apresentam como as autoridades policiais responsáveis pela investigação deram entrevistas afirmando que os influenciadores presos em Belém seriam culpados por diversos crimes. [...] No Brasil, e assim como em diversos outros países no mundo, o sistema de justiça penal está fundado no princípio da presunção de inocência, que significa que ninguém deve ser considerado culpado antes do trânsito em julgado.”

Esse princípio, segundo ele, envolve tanto a forma como o investigado é tratado quanto a distribuição do ônus da prova. “Você deve tratar uma pessoa investigada, uma pessoa processada como inocente, você não deve antecipar a pena. [...] Quem tem a obrigação de comprovar os fatos é a acusação e não a defesa.”

Silveira cita decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que consideraram entrevistas de promotores e delegados, nas quais se afirmava a culpa de investigados, como violações do devido processo legal — decisões que já foram referenciadas pelo Supremo Tribunal Federal. “Esta investigação por si só já carrega consigo um problema de estrutura base processual, qual é? Não se está tratando essas pessoas como inocentes, mas sim se está tratando como culpados, como se já fossem culpados, muito embora nem sentença exista.”

Ele conclui que a atuação estatal nesses casos enfrenta “problemas graves de base”. “Do ponto de vista técnico, a estratégia de utilização para conter essa questão do cassino online mediante a criminalização dos influenciadores é desproporcional, é ilegítima e é ilegal. [...] Muito embora, repito, a situação dos influenciadores digitais não esteja diretamente relacionada com a exploração do jogo de azar, mas sim com a sua publicidade. O que a toda evidência não pode ser comparada uma coisa com a outra.”

Parcerias comerciais fazem parte da lógica do mercado, defende Silveira

A associação entre influenciadores digitais e plataformas consideradas “suspeitas” tem sido frequentemente usada como argumento para justificar operações policiais e medidas judiciais. No entanto, o advogado criminalista Filipe Silveira alerta para o risco de atribuir automaticamente um juízo de valor negativo a essas parcerias com base apenas na natureza da plataforma.

Segundo ele, o fato de os influenciadores estabelecerem parcerias comerciais com empresas das mais diversas naturezas faz parte da lógica do mercado e não pode ser tratado como indício de conduta ilícita. “Não acho que o influenciador esteja mais propício ou numa situação de maior possibilidade de fazer uma parceria com uma plataforma suspeita ou não suspeita. Eu acho que na condição de influenciador, ele está sujeito a ser procurado por diversas marcas que queiram aproveitar a sua entrada e a sua influência no meio onde ele atua, mas isso seria algo que é inerente a qualquer profissão”, afirma.

Investigação contra influenciadores exige rigor técnico e cautela jurídica

As investigações criminais envolvendo influenciadores digitais que divulgaram jogos de azar como o “jogo do tigrinho” seguem os mesmos parâmetros legais que regem qualquer apuração penal no Brasil. Segundo o advogado criminalista Filipe Silveira, é essencial que a coleta de provas digitais siga critérios técnicos rigorosos e respeite os direitos fundamentais dos investigados.

“Toda investigação criminal parte sempre da autoridade conhecendo a situação. Então, a autoridade deve coletar elementos para afirmar a sua hipótese de investigação. Então, nesse caso, a autoridade tomou o conhecimento que alguns influenciadores estavam divulgando o ‘jogo do tigrinho’ e aí ela busca, então, elementos para confirmar se eles de fato faziam isso", explica Silveira.

De acordo com ele, postagens em redes sociais e vídeos divulgados na internet podem, sim, servir como prova. No entanto, o Estado deve garantir a integridade e autenticidade desse material por meio da chamada cadeia de custódia. “É necessário que a coleta dos vídeos ou áudios sejam feitas por perito, que essas coletas sejam garantidas, que elas foram retiradas do site XYZ. É recomendável que tenha uma perícia para testar as gravações, que não houve alteração. Código RAS para proteger os arquivos digitais de eventuais alterações e assim sucessivamente", comenta o criminalista.

Além das postagens, a investigação pode ser ampliada para outras frentes, a depender do que for identificado durante o inquérito. “Com relação ao objeto da investigação em si, ele pode, sim, ser aumentado, ele pode ser expandido se a autoridade, assim, suspeitar. Então, na hipótese criminal investigada, pode não ser apenas a divulgação ou a realização de promoção ilegal de jogos de azar, mas querendo saber também se essa divulgação promoveu algum outro ilícito, como alguma fraude, ou mesmo a lavagem de dinheiro, como foi reportado em algumas reportagens que foram feitas pela mídia local", destaca.

Nesse contexto, a autoridade policial tem autonomia para direcionar os rumos da apuração. No entanto, medidas como a quebra de sigilo bancário ou fiscal dependem de autorização judicial. “O delegado deve requerer à autoridade judicial a autorização para ter a quebra do sigilo fiscal, a quebra do sigilo bancário e, a partir disso, fazer as análises e eventuais cruzamentos de dados", pontua Silveira.

Sobre a suspeita de lavagem de dinheiro, Silveira faz uma ressalva fundamental: esse crime exige, obrigatoriamente, a existência de um delito anterior que tenha gerado lucro ilícito. “A questão só é que o crime de lavagem é um crime que depende de um delito antecedente. Então, se não há delito antecedente, não há como afirmar a lavagem de dinheiro, e esse vai ser sempre um ponto de muita atenção nesses tipos de investigação", diz.

O segundo critério para configurar lavagem é a tentativa de ocultar os valores obtidos. “Porque não basta que o dinheiro seja produto de uma atividade ilícita anterior. É necessário que haja, ao menos, uma tentativa de ocultar esses valores. Se não houver essa tentativa de ocultação, então não há como falar de lavagem de dinheiro também", justifica.

Por isso, Silveira afirma que, no atual estágio das apurações, ainda não há elementos suficientes para confirmar que influenciadores tenham cometido esse tipo de crime. “Do ponto de vista da conduta dos influenciadores digitais, isso ainda não está claro", reflete.

Assine O Liberal e confira mais conteúdos e colunistas. 🗞
Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱
Brasil
.
Ícone cancelar

Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo!

Oferecemos notícia e informação de graça, mas produzir conteúdo de qualidade não é.

Os anúncios são uma forma de garantir a receita do portal e o pagamento dos profissionais envolvidos.

Por favor, desative ou remova o bloqueador de anúncios do seu navegador para continuar sua navegação sem interrupções. Obrigado!

ÚLTIMAS EM BRASIL

MAIS LIDAS EM BRASIL