Da árvore à tradição: cuias carregam séculos de história e resistem no cotidiano do Pará

As cuias são utilizadas na Amazônia brasileira há pelo menos 3 mil anos, segundo arqueóloga. Modo de fazer por artesãs e o uso do artefato se mantém até hoje

Bruno Roberto | Especial para O Liberal

A árvore conhecida como cuieira dá origem a um dos elementos simbólicos mais marcantes da identidade paraense: a cuia, que carrega séculos de história, tradição e representatividade. Apesar das inovações da modernidade, o modo de fazer as cuias resiste até hoje, sendo passado através de gerações, assim como o uso delas pela população ribeirinha e urbana – com utilidades diversas, desde fins medicinais até para tomar um bom açaí e tacacá.

A cuia é origina de um fruto verde e redondo – que leva o mesmo nome do utensílio – da cuieira, árvore da espécie Crescentia cujete. Adaptável para diferentes tipos de solos, a planta está presente em várias florestas localizadas na zona tropical, inclusive na região amazônica, de acordo com a arqueóloga Daiana Travassos Alves.

Os registros históricos indicam que os povos indígenas na Amazônia peruana utilizam as cuias há pelo menos 5 mil anos, segundo a arqueóloga. No caso da Amazônia brasileira, foi observada a presença do artefato há cerca de 3 mil anos, perto da região de vários rios afluentes do rio Amazonas.

“Vemos a presença da cuia em diferentes rios tributários ao longo da calha do rio Amazonas, como o rio Negro, rio Xingu, rio Tapajós, cuja região fica em torno de Santarém, onde tem essa presença muito grande das cuieiras associadas com os assentamentos humanos bastante antigos”, detalha a arqueóloga.

image A Arqueóloga Daiana Travassos Alves tocando no fruto da cuieira, também chamado de cuia (Foto: Ivan Duarte/O Liberal)

Desde os séculos passados, as cuias são utilizadas para diferentes atividades do cotidiano. O objeto é usado para fins alimentares, além de auxiliar com funções medicinais, de navegação e lazer. “A cuia vai ser utilizada para servir e consumir alimentos e líquidos, para tirar água da canoa, dar remédio para crianças e até como forma de brinquedo”, explica Daiana Travassos.

Como é o modo de fazer uma cuia e quanto tempo leva?

A produção de cuias é uma atividade predominantemente feminina, desde os primeiros registros históricos, sendo transmitida através de gerações, de acordo com a arqueóloga Daiana Travassos. “Os homens, em geral, no máximo se envolvem na coleta dos materiais que são utilizados no processamento. Mas todo processo de confecção é atividade feminina, em geral”, completa Daiana.

Em Belém, a artesã Maria Santana Magalhães, de 43 anos, trabalha há 26 anos com cuias. Ela explica que o processo de confecção da cuia dura em torno de 15 dias. “Não leva muito tempo. Quando pegamos ela, cortamos, limpamos e botamos para secar. Com 15 dias, ela está totalmente preparada”, relata Maria.

image A cuia é utilizada na Amazônia brasileira há três séculos (Foto: Ivan Duarte/O Liberal)

A artesã explicou que são realizadas cinco etapas até o artefato estar pronto para o uso: a colheita, quando é retirado o fruto maduro da cuieira; o corte, momento em que a artesã serra o fruto; a limpeza, cujo miolo é retirado e descartado; o lixamento, quando a parte interna do fruto é lixada; e a exposição ao sol para o processo de secagem.

Após as cinco etapas, a artesã pode riscar os grafismos e tingir a peça. Com base no tingimento, a cuia apresenta duas classificações: a pitinga, quando a cuia não é pintada e fica na cor marrom; e a mitinga, quando a cuia é tingida, por exemplo, de preto, com o corante natural cumatê. No caso da cuia mitinga, é necessário realizar o lixamento na parte externa também.

Poucas ferramentas são utilizadas para a produção da cuia. A artesã Maria Magalhães utiliza uma serra para cortar o fruto, uma colher para retirar o miolo, uma lixa para fazer o lixamento, além de ferramentas improvisadas de ferro para riscar os grafismos.

Os grafismos que remetem à fauna amazônica são um fenômeno do século XX

A arqueóloga Daiana Travassos afirma que há relatos de cuias que eram pintadas pelos povos indígenas antes da chegada dos portugueses, mas não se encontrou esses objetos. Já as cuias encontradas e datadas do século XVIII apresentam inspiração estética europeia (barroco) e asiática, o que demonstra um alto domínio da técnica de pintura das mulheres indígenas. “Elas absorvem essa outra forma de fazer os grafismos, que é distinta do que elas faziam anteriormente. São cuias muito lindas de inspiração europeia e, inclusive, da porcelana asiática”, relata Daiana.

Os grafismos com ilustrações que remetem à fauna amazônica são um fenômeno do século XX, na região de Santarém, segundo a arqueóloga. “Começa a se reproduzir nas cuias as imagens de inspiração regional e de natureza, não necessariamente amazônica”, explica.

Já a reprodução de grafismos inspirados na cerâmica arqueológica – principalmente a tapajônica e marajoara – é um fenômeno mais recente, visto a partir da década de 1950, que estava sendo perdido, conforme a arqueóloga.

“Em torno dos anos 2000, a produção de cuias não estava sendo valorizada. Então, tem um movimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), junto às comunidades do Aritapera, da região de Santarém, que passa a organizar esses grafismos em uma espécie de apostila para as artesãs retomarem”, comenta Daiana.

A cuia como parte da identidade paraense

Em 2015, o Iphan registrou o modo de fazer cuias do Baixo Amazonas como patrimônio cultural do Brasil. Segundo a arqueóloga Daiana Travassos, esse reconhecimento é um dos fatores que ajudou a cuia a se ligar ainda mais ao imaginário do paraense. “Essa valorização é um fenômeno mais recente, principalmente a partir dessa valorização do modo de fazer como patrimônio imaterial”, defende.

Além do reconhecimento, o fator gastronômico também é outro ponto destacado pela pesquisadora para o fortalecimento das cuias como parte da identidade do povo paraense. “Aqui no Pará, principalmente por conta da valorização da gastronomia paraense nos últimos 40 anos, mais ou menos, a cuia se torna um elemento muito grande da nossa identidade”, afirma a arqueóloga.

image Maniçoba servida em uma cuia pela atendente Mariana da Silva (Foto: Wagner Santana/O Liberal)

Preservação e valorização das cuias

A arqueóloga Daiana Travassos destaca que a valorização das cuias enquanto produto comercializado varia com o tempo. Atualmente, há uma demanda crescente, ainda que seja necessário um maior reconhecimento do modo de fazer. “No século XVIII e XIX, a produção de cuias era muito valorizada, na região de Monte Alegre e Santarém, onde serviam como moeda de troca. Isso vai se perdendo no século XX e, agora, é retomado. As ‘melhores acabadas’ são valorizadas como objeto artístico para decoração, mas também para servir comida em restaurantes de comidas típicas”, explica.

Em relação ao uso das cuias como utensílio do dia a dia nas casas paraenses, Daiana aponta que há uma queda, principalmente nas famílias ribeirinhas. “A cuia perde espaço a partir do momento que os objetos de plástico são incorporados em comunidades amazônicas. Os estudos apontam que o uso de cuias no cotidiano das famílias ribeirinhas tem diminuído, enquanto vemos elas sendo incorporadas mais em lugares urbanos, principalmente associados a vendas de comidas típicas”, conta.

A artesã Maria Magalhães ressalta a importância de passar o legado da cuia para as próximas gerações, a fim de que a cultura da cuia não acabe. “Para mim, é maravilhoso poder trabalhar com a cuia e demonstrar a nossa cultura para ela não morrer. É importante podermos repassar, porque e se acabar? Como vamos ficar? Hoje, o jovem não sabe como é o trabalho de cuia”, relata Maria Magalhães.

A importância da cuia aos que trabalham com comidas típicas

O ato de tomar um açaí, tacacá ou outra iguaria paraense é instantaneamente associado com a imagem das cuias. Ana Alice Pantoja trabalha em uma barraca que vende comidas típicas na avenida Nazaré e considera a cuia um artefato essencial para o seu trabalho, uma vez que é onde os alimentos são servidos. “A cuia é muito importante porque ela é um dos principais utensílios para nós. É onde colocamos o tacacá, o tucupi e, hoje, podemos colocar o vatapá e a maniçoba, o que muitos procuram”, comenta.

A cuia ajuda nas vendas por ser um atrativo maior aos turistas, além das iguarias locais. “As comidas típicas estão sendo muito procuradas, principalmente pelos turistas. A comida que vendemos é paraense, vinda dos indígenas, e a cuia traz isso”, relata a comerciante, que utiliza bastante a cuia em casa com a família. “Eu tenho cuias em casa. Minha família é muito paraense e tomamos açaí e maniçoba na cuia”, completa Ana Alice.

image Ana Alice Pantoja servindo tacacá na cuia (Foto: Wagner Santana/O Liberal)

Para Mariana da Silva, atendente de outra barraca que vende comidas típicas na mesma avenida, a cuia também é um objeto importante para o cotidiano do trabalho. “A cuia representa a nossa ferramenta de trabalho. Usamos ela para servir o tacacá. Se o cliente quiser a maniçoba, também colocamos na cuia, além do açaí. Ela é muito importante”, declara.

A cuia para os paraenses

Em uma tarde de um dia comum, o DJ Dinho Tupinambá parou em uma barraca com comidas típicas na avenida Nazaré. Ele escolheu comer uma maniçoba na cuia, artefato que o DJ exalta e valoriza como um grande símbolo paraense. “A cuia é um artefato nosso que simboliza a nossa cultura e que podemos botar o que há de melhor na nossa culinária. Não só o açaí, o tacacá, a maniçoba, mas tudo o que experimentar. Sendo nosso, da Amazônia, colocando na cuia, vai ficar legal”, defendeu Dinho.

Além de servir para alimentar, a cuia ativou memórias antigas do DJ, que recordou quando utilizava o artefato na infância. “Eu morei na região das ilhas de Abaetetuba quando era criança e eu lembro que comíamos açaí com farinha, sem açúcar, na cuia. Usávamos muito a cuia”, conta.

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