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Às vésperas da COP 30, ilha do Combu, em Belém, alerta para o desafio climático na Amazônia

Dados do Inmet mostram como a capital que sedia a COP 30 está mais quente e menos úmida - acompanhando uma tendência que já coloca em risco cultivos como o açaí e compromete fontes de renda e subsistência de populações da região

Anna Peres / Especial para O Liberal

Ruy Barata, poeta e compositor brasileiro, nortista e amazônida, certa vez escreveu versos que se tornariam uma ode ao modo de vida ribeirinho. "Esse rio é minha rua. Minha e tua mururé", diz, logo na primeira estrofe, a composição que tão bem traduz e celebra a forma de viver das comunidades tradicionais que habitam as margens dos rios na Amazônia - região baseada na convivência em harmonia e profundo respeito pelos rios e pelas florestas que com eles se encontram. O mururé, para quem não sabe, é o nome popular de diversas plantas aquáticas, comuns nos cursos d’água nessa parte do Brasil.     

No entanto, a vida que inspirou a poesia, hoje, pode estar ameaçada. Isso é demonstrado pelo que acontece na ilha do Combu: distante apenas 10 minutos de barco de Belém, cidade que vai sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (COP 30), em novembro, a localidade nos dá um exemplo do risco representado pela ação humana desordenada, pela perda da biodiversidade e pelas alterações nos padrões climáticos, como mostra esta colaboração entre jornalistas e cientistas latino-americanos, liderada pelo Instituto Serrapilheira do Brasil e pelo Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip), para explorar como os danos à biodiversidade da Amazônia interrompem os vários serviços ambientais que ela fornece ao continente.

Cercado pelas águas barrentas do rio Guamá – chamadas assim por sua coloração amarronzada – o Combu é uma das 42 ilhas que formam a região insular de Belém. O território, de aproximadamente 1,5 mil hectares, é regularmente inundado sob influência das marés. Por isso, suas construções são todas palafitas. Casas, restaurantes, pousadas e até mesmo escolas e postos de saúde são erguidos sobre estacas ou pilares de madeira, quase sempre com uma bela vista do rio. Mais que um corredor de escoamento, para o ribeirinho, o rio é território vivo, fundamental para sua sobrevivência e identidade.

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Vivem ali, aproximadamente 1,5 mil pessoas, segundo o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio), órgão do governo do Estado responsável pela Área de Proteção Ambiental (APA). Os moradores mais antigos são também testemunhas vivas das transformações pelas quais a ilha passou nos últimos anos.

Prazeres Quaresma, 56 anos, é uma dessas moradoras. Sua família está no Combu há pelo menos três gerações. O avô materno chegou em 1914, durante o declínio do ciclo da borracha na Amazônia, e começou a plantar cacau. Mais tarde, com a crise do fruto no Brasil, substituiu a amêndoa pelo açaí. Na década de 1980, o pai, José Anjos, fundou um dos mais tradicionais restaurantes do Combu, o Saldosa Maloca, hoje administrado por Prazeres.

image Dona Prazeres, da Saldosa Maloca, onde tradição e resistência se encontram à beira do rio Guamá (Foto: Igor Mota / O Liberal)

“Sempre digo que tenho uma relação de intimidade com o Combu. Grande parte da minha família está aqui. Então, a gente se preocupa com o futuro dessa ilha”, conta a comerciante. Além do Saldosa Maloca, cuja especialidade são os pratos preparados com peixes típicos da região amazônica, como o Tambaqui e a Piraíba, popularmente chamada de Filhote, Prazeres também é proprietária de um sítio no Combu. Nos últimos dois anos, a propriedade teve sua produção de frutas comprometida por questões climáticas, como aumento de temperatura e as secas de 2023 e 2024. “Foi terrível. A gente sempre pensa: ah, esse ano teve uma estiagem, mas ano que vem vai ser melhor. Aí, no ano seguinte, é pior. E a gente não se prepara pro pior, a gente espera sempre que melhore, acredita que vai melhorar”, lamenta.

Os efeitos da crise climática, no entanto, vão além do impacto na produção de açaí, cacau e cupuaçu. “Lembro que há alguns anos, quando a gente deitava para dormir aqui na ilha, a gente precisava se cobrir, porque fazia frio. Hoje, a gente dorme completamente descoberto, com calor e ainda com a necessidade de ligar o ventilador. Você imagina isso? O quanto já aumentou (a temperatura), o quanto as mudanças estão acontecendo e o quanto elas estão afetando a nossa vida”, relata Prazeres.

image 'O Combu é minha casa e minha luta': à frente da Saldosa Maloca, Prazeres defende um turismo que preserve a floresta (Foto: Igor Mota / O Liberal)

Belém: mais quente e menos úmida

O que Prazeres sente na pele e observa na vegetação no Combu é comprovado cientificamente. Durante três meses, a produção desta reportagem contou com a colaboração de cientistas ligados ao Programa de Formação em Ecologia Quantitativa do Instituto Serrapilheira. Os pesquisadores Maria Luiza Busato e Luís Cattelan extraíram e analisaram dados como precipitação (chuvas), temperatura e umidade de Belém, provenientes de duas estações meteorológicas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), situadas na cidade, entre os anos de 1981 e 2024.

O resultado dessa análise mostra uma cidade cada vez mais quente e menos úmida, desde o início da década de 1980. Nos últimos 40 anos, a temperatura subiu 1,32 ºC, enquanto a umidade relativa do ar – a proporção entre a umidade existente no ar e a umidade máxima que poderia existir a uma determinada temperatura – caiu 2,64%. Na estação mais seca, o chamado verão amazônico, de junho a novembro, quando chove menos, esses índices ficam ainda mais acentuados, com aumento de temperatura de 1,86 ºC e redução de umidade de 5,3%.

Para as plantas, como o açaí, do qual boa parte dos ribeirinhos do Combu depende como fonte de renda e base alimentar, essa combinação de fatores tem se revelado altamente prejudicial. Dados preliminares de um estudo desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na Amazônia Oriental, apontam queda de 15% a 20% na produção de açaí não irrigado, de várzeas e igapós, e de até 40% do açaí irrigado, plantado em terra firme, em 2024, no Pará.

“Particularmente no período mais seco ou menos chuvoso, houve muitos sinais, nos cultivos acompanhados pela Embrapa, de que algo estava em demasia e era a temperatura do ar”, explica o pesquisador da Embrapa, Alessandro Carioca, especialista em Meteorologia de Ecossistemas Florestais e Agrícolas na Amazônia.

O cientista monitora cultivos de açaí, cacau, cupuaçu e dendê nos municípios de Tomé-Açu e Moju, na região nordeste do Pará. Ele observou que, por muitos dias, as temperaturas máximas estavam acima da média registrada nos últimos anos. “Os sinais ficaram mais evidentes quando as pessoas que lidam com esses cultivos começaram a relatar que flores de açaí estavam sendo “abortadas”. Frutos não estavam tendo enchimento, o vigor das plantas estava diminuindo, com folhas queimadas e morrendo”, detalha o pesquisador.

O que acontece nos municípios do nordeste paraense acontece também a 200 quilômetros de distância, em Belém. “No verão passado morreu muita árvore. Cupuaçu, pupunha, goiaba... secou completamente, desde o fruto até árvores inteiras”, descreve a artesã Silvia Rosa, 40 anos, sobre as perdas em seu sítio e na propriedade dos sogros, que fica ao lado da casa dela.

image Silvia coleta folhas e sementes na floresta para transformar em biojoias: arte e sustento moldados pela natureza (Foto: Igor Mota / O Liberal)

Tempo seco e quente

Moradora do Combu desde que tinha 5 anos de idade, Silvia é produtora de biojoias, peças artesanais feitas com folhas e sementes da Amazônia, e costuma percorrer longos caminhos na ilha em busca de matéria-prima. Uma rotina que também vem sofrendo mudanças atribuídas ao clima. “Antigamente, quando ia para o mato buscar sementes, ficava toda suja de lama. Hoje em dia, não, tá muito mais seco. Então a gente nota essa diferença, que tá mais quente e mais seco também”, diz.

image Ribeirinha desde a infância, Silvia sente na pele o impacto do clima: 'Hoje tudo está mais quente, mais seco' (Foto: Igor Mota / O Liberal)

No último ano, 46 das 144 cidades paraenses passaram mais de 150 dias sob extremos de calor. A capital, Belém, e Melgaço, na ilha do Marajó, foram as cidades com os maiores períodos de calor extremo no Brasil. As informações são de uma análise feita pelo Centro Nacional de Monitoramento de Desastres (Cemaden), com base em dados de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em Belém, segundo esses mesmos dados, foram 212 dias consecutivos com temperaturas chegando a 37,3ºC, o que representa até 5ºC acima da média das temperaturas máximas registradas na última década. Um recorde, mesmo para uma cidade onde tradicionalmente faz calor o ano inteiro.

Secas recorrentes acendem alerta de insegurança hídrica 

As altas temperaturas e perda de umidade se somaram os efeitos da estiagem, nos últimos dois anos. Tanto em 2023 quanto 2024, a Amazônia enfrentou secas extremas, com baixas acentuadas dos níveis dos rios, como consequência da forte intensidade do El Niño, fenômeno climático que tem como principal característica o aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico, alterando padrões atmosféricos e afetando o clima em várias partes do mundo.

Em Belém, uma das consequências dessa associação de fatores pode ter sido o período prolongado de salinização da água do rio Guamá. “Sempre acontece no verão. A água do rio fica esverdeada e salobra. Mas antes era um mês ou um pouco mais e, no ano passado, foram uns três meses”, conta Prazeres. “Nessa região do estuário, como estamos próximo ao oceano Atlântico, quando temos uma seca intensa e a vazão do rio diminui muito, então o oceano avança mais sobre esse rio”, explica a bióloga Vania Neu, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra).

image Herança ribeirinha: há mais de três gerações no Combu, a família de Prazeres testemunha as transformações da Amazônia (Foto: Igor Mota / O Liberal)

Riscos ao açaí

Desde 2023, Vania e pesquisadores de outras sete instituições científicas do Pará, São Paulo e Rio de Janeiro estudam o estuário do rio Pará, do qual fazem parte o rio Guamá e a baía do Guajará, que banham Belém e suas ilhas. “É muito preocupante quando a gente olha, a longo prazo, e vê a intensificação desses fenômenos extremos como as secas, que antes víamos com intervalo de vários anos, ocorrendo em dois anos seguidos. Então essa frequência maior, o aumento da salinização dessas águas, traz uma insegurança hídrica muito grande para as pessoas que vivem nessa região”, pondera.

A salinização prolongada da água também pode comprometer a produção do açaí. Em um artigo publicado em 2023, os pesquisadores Cristóvão Henrique Ribeiro da Silva e Raylene Cameli, geógrafos da Universidade Federal do Acre (Ufac), descrevem o que vem ocorrendo no arquipélago de Bailique, no estado do Amapá. Nos últimos anos, se observou um aumento nos períodos de inundações do arquipélago, com avanço do oceano e redução na vazão do rio Amazonas, resultando em salinização da água doce. O fenômeno estaria afetando o cultivo de açaí e há relatos de famílias colhendo açaí salgado.

As secas na Amazônia se tornaram mais recorrentes a partir dos anos 2000. Enquanto entre 1960 e 1990 foram registrados sete períodos de estiagem, nas duas últimas décadas a região sofreu com oito secas. Além de intervalos menores, o fenômeno se tornou também mais severo, com pelo menos quatro períodos de secas extremas: 2005, 2010, 2015-2016 e 2023-2024.

Às vésperas da COP 30, ilha do Combu, em Belém, alerta para o desafio climático na Amazônia

Uma dupla emergência: crise climática e perda de biodiversidade

Na última década, a ilha do Combu tornou-se uma referência turística para Belém. Mas, junto com o boom da atividade econômica, a ilha passou a sofrer impactos sociais, ambientais e culturais, sobretudo pela falta de regulamentação. Desde 1997, o Combu é reconhecido como Área de Proteção Ambiental (APA), cujo objetivo é justamente proteger a biodiversidade e regular a ocupação humana, para garantir o uso sustentável dos recursos naturais.

Somente este ano, no entanto, após sucessivos protestos e cobranças por parte dos ribeirinhos, o Plano de Manejo do Combu começou a ser desenhado pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio), órgão do governo do Estado responsável pela APA. A ocupação da ilha, sobretudo às margens do igarapé Combu - onde está localizada a maior parte dos estabelecimentos comerciais, principalmente bares e restaurantes -, se intensificou a partir de 2011, com a chegada da eletricidade.

Publicado em março deste ano, o Boletim de Sustentabilidade das Ilhas do entorno de Belém, da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), mostra como o Combu vem sendo reconfigurado nos últimos anos. De acordo com os dados apresentados na publicação, entre 2002 e 2023, as áreas descobertas na ilha aumentaram quase dez vezes – passando de 0,124 km² para 1,237 km² – com perda de 6,26% de floresta densa. Já a ocupação humana cresceu 49 vezes, subindo de 0,010 km² para 0,491 km². Enquanto a massa d’água reduziu 30,67%.

Ribeirinha e proprietária de um dos restaurantes mais tradicionais do Combu, Prazeres, que também é turismóloga, defende o turismo de base comunitária como alternativa ao modelo atual de ocupação. “Tem como trazer desenvolvimento econômico para a ilha sem destruí-la. A urbanização não é a alternativa correta. Acho que as pessoas que visitam o Combu precisam querer uma experiência de floresta”, defende.

Ela também demonstra preocupação com elementos da identidade ribeirinha, que vão desaparecendo em meio ao ritmo frenético, como o banho de rio e o transporte no “casco”, como comumente os ribeirinhos chamam as canoas. “Quando a gente tomava banho de rio, principalmente as crianças, elas ficavam brincando de pira-esconde, pega-pega... Hoje isso não é possível por causa das lanchas que passam em alta velocidade. Então os mais jovens estão perdendo essa relação com o rio”.

Mãe de dois filhos, um menino e uma adolescente, a artesã Silvia, que cresceu em meio a brincadeiras no rio, já não permite que as crianças façam o mesmo por medo de acidentes. Para ela, é preciso aprender a conviver em harmonia com a natureza. “A gente tem que respeitar a natureza. Respeitando, a gente tem os benefícios que ela dá, podemos tirar dela, inclusive, nosso sustento”, diz.

Há três anos, Silvia transformou a confecção de artesanato e biojoias em sua principal fonte de renda. É da natureza que ela retira quase tudo que precisa. Para a artesã, a relação com o rio e a floresta não é uma via de mão única. Há muito respeito e responsabilidade, como o manejo adequado de todos os recursos naturais.

image 'Respeitar a natureza é garantir o nosso futuro': Silvia, artesã do Combu, vive do que a floresta dá — com cuidado e sabedoria (Foto: Igor Mota / O Liberal)

Em cada incursão, em busca de folhas e sementes, ela coloca em prática os ensinamentos que aprende com o sogro, apanhador de açaí. “Desde pequeno ele ia para o mato. Aqui, nossa vivência é açaí, então as crianças, os meninos, começam cedo a apanhar açaí e aprendem todas essas coisas. Ele conhece o mato, conhece tudo, se cair uma semente, uma folha ali ele sabe o que é, para que serve”, ensina.

Silvia e Prazeres, duas mulheres da Amazônia, ribeirinhas com raízes fincadas no Combu, trazem esse apelo, que deve ecoar até a COP 30, que já está sendo chamada por muitos de a COP da floresta. “Espero que não seja só mais um encontro de nações para discutir o clima. O clima já foi muito discutido. O que a gente precisa, agora, é de medidas para minimizar o que já está feito. Que esse encontro traga soluções efetivas e não fique só no discurso”. É o que todos os povos da floresta querem.

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