'Mães de Anjos': Grupo acolhe mulheres em luto materno e oferece apoio emocional
A perda gestacional, perinatal ou neonatal ainda é um tabu social, marcado pelo silenciamento e pela invalidação da dor

O luto materno muitas vezes é um tabu social, marcado pelo silenciamento e pela invalidação da dor das mães que perderam seus filhos. Para dar apoio às mulheres nesse momento delicado e sensível, o grupo "Mães de Anjos" oferece acolhimento e ajuda emocional a todas que precisam externalizar os sentimentos.
A jornalista paraense Flávia Araújo foi uma das mães acolhidas pelo grupo após a perda do filho Théo. Segundo ela, a perda do bebê, que faleceu 44 horas após o nascimento, despertou uma grande dor. “Eu já o amava profundamente, tive uma gestação normal e tranquila. A gente já havia comprado roupas, montado o quarto, escolhido o nome. E, de repente, eu voltei para casa com os braços vazios. A dor era física, emocional e espiritual”, descreveu.
Théo nasceu no dia 29 de maio de 2021, após 12 horas de parto. No entanto, devido a uma complicação, ele precisou ser internado e não resistiu. Vivenciar a perda do filho sem ter uma despedida digna culminou em um luto profundo. “A gente fica totalmente sem chão, sem entender o que estava acontecendo. Aí eu entrei na UTI, pedi para segurar ele. Eu o segurei por cerca de 15 minutos, e ele já estava sem vida. Eu não tive a oportunidade de me despedir, de chamar a minha irmã, que é a madrinha dele, de chamar um padre. Eu não tive esse momento de despedida com ele. Eu não tenho o pezinho dele, não tenho nenhuma lembrança dele. E é uma coisa que não volta”, disse Flávia.
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Para Flávia, a criação de espaços de escuta e de reconhecimento da dor é essencial. “É preciso legitimar o luto de uma mãe que perde seu bebê, independentemente do tempo de gestação. Quando não fazemos isso, colocamos essas mulheres em um lugar de isolamento ainda maior. E eu fui acolhida no grupo ‘Mães de Anjos’. Tivemos conversas e fizemos atos simbólicos para homenagear o Théo, que me ajudaram a lidar com o que sentia sobre a saudade dele. Quem vê de fora não entende, não sabe como é”. Atualmente, Flávia é mãe de Aurora, que tem 10 meses.
Ajuda a outras mães
Flávia também transformou sua dor em luta. Usou suas redes sociais para dar visibilidade ao luto materno e inspirou a criação da "Lei Theo Araújo Carvalho", sancionada em 2022 em Belém, que institui a Semana Municipal de Conscientização sobre Perda Gestacional, Neonatal e Infantil, realizada anualmente em outubro.
“O luto materno ainda é tratado como tabu. A nova legislação nacional vem para dar respaldo, para que as mães possam ser acolhidas, não silenciadas”, diz Flávia.
A dor da perda permanece, mas também permanece o amor. “Theo me ensinou o valor da vida. A missão dele é ser semente”, afirma Flávia. Já Tainá conclui: “A partir do momento em que descobri que estava grávida, tudo girava em torno da Luísa. Ela existiu e sempre vai existir. A legislação reconhece isso: nossos filhos existiram”, ressalta Flávia.
Cuidado e acolhimento psicológico
A dor vivida por mulheres como Flávia tem, aos poucos, ganhado reconhecimento institucional. Em maio deste ano, foi sancionada a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental (Lei 14.898/2024). A nova legislação visa garantir atenção integral e humanizada às mães e famílias que enfrentam perdas gestacionais, neonatais ou infantis, prevendo desde o acolhimento psicológico até a criação de protocolos hospitalares respeitosos.
O apoio entre as mães tem se tornado fundamental para o enfrentamento do luto. Tayná Rodrigues, farmacêutica de 36 anos, também viveu essa dor. Em 2019, quando estava grávida de 32 semanas de sua primeira filha, Luísa, percebeu que os movimentos da bebê pararam. “Procurei um serviço de emergência e a ultrassonografia confirmou que não havia mais batimentos, nem líquido amniótico”, conta. A perda foi abrupta e devastadora.
Tainá optou por ser atendida em um hospital público, onde uma enfermeira obstetra pudesse estar por perto. “Isso fez toda a diferença. Ela teve o cuidado de me colocar em um quarto separado, sem outras mães com bebês recém-nascidos. Fiquei só com meu esposo. Isso foi fundamental. Eu demorei cerca de seis meses para conseguir escutar o choro de outras crianças sem sentir dor”, contou.
Assim como Flávia, Tainá encontrou no acolhimento psicológico uma forma de seguir, ao passar a participar de encontros do grupo Mães de Anjos, onde pôde externalizar sua dor e escutar relatos semelhantes. “No início, eu mal conseguia falar. O grupo me ajudou a colocar para fora. Foi onde comecei a me reconstruir”, diz.
"Já soltamos balões com os nomes dos nossos filhos, acendemos velas, escrevemos cartas. Isso materializa a existência deles, porque é um luto do que não foi vivido”, explica Tainá.
Solidariedade para enfrentar o luto
A psicóloga Maiana Okada, que é estudiosa sobre luto e, desde 2020, se dedica especificamente ao luto parental, é uma das responsáveis pelo grupo "Mães de Anjos", uma rede de acolhimento que tem transformado a maneira como muitas mães vivem essa dor.
“O grupo surgiu da necessidade. A dor do luto parental era silenciada. Em 2022, fiz uma roda de apoio presencial com três participantes. Daquele encontro nasceu o grupo, que cresceu organicamente”, conta. Com o tempo, e por conta da dificuldade das participantes em frequentar os encontros presenciais, o grupo passou a se reunir online. Hoje, além de encontros esporádicos, existe um grupo no WhatsApp que acolhe mães de diferentes estados.
“O grupo se tornou um espaço seguro para falar da dor. A mulher pode contar mil vezes a mesma história do seu filho, e será acolhida mil vezes. Lá, essa criança existe. Diferente do que acontece fora, onde muitas vezes as pessoas dizem: ‘Já passou tanto tempo’”, explica Maiana.
Atualmente, cerca de 35 mulheres participam do grupo. A dinâmica é simples: ao entrar, a mãe se apresenta e compartilha sua história. Em seguida, é acolhida por outras mães. “É nesse momento que acontece o reconhecimento. Uma diz: ‘Eu também perdi’. E esse também é transformador”, relata.
Maiana ressalta que o grupo não substitui a psicoterapia, mas oferece algo igualmente valioso: escuta, acolhimento e pertencimento: “Nem todas as mulheres precisam de terapia, mas todas precisam de um espaço para falar da sua dor, para nomear o que sentem, para contar a história do seu bebê. Isso transforma”.
Como participar do grupo "Mães de Anjos"
Para participar do grupo de acolhimento, basta acessar o perfil da psicóloga no Instagram: @mayanaokada. Lá, há um link direto para o grupo no WhatsApp.
“A dor do luto não é superada. A vida é que se transforma até que a gente consiga carregar essa dor. Ela pesa uma tonelada, sempre vai pesar. A diferença é que a gente aprende a carregá-la”, finaliza a psicóloga Maiana Okada.
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