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Acessibilidade é desafio para o desenvolvimento do turismo paraense

Com cerca de um milhão de paraenses com alguma deficiência ou dificuldade de locomoção, os setores ligados ao turismo ignoram o próprio público

Victor Furtado

É senso comum que o Pará tem imenso potencial turístico. Mas não para pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida. A constatação é da Associação Paraense de Pessoas com Deficiência (APPD). A entidade aponta que nos principais pontos turísticos do estado faltam condições para atender esse público. Falta estrutura básica e profissionais capacitados. Mas há dificuldades também em transporte, hospedagem e acesso às atrações e espaços de cultura e lazer.

Jordeci Santa Brígida, diretor técnico e científico da APPD, lembra o que deveria ser óbvio: pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida também são intelectuais, que apreciam história e cultura; também trabalham e têm dinheiro para movimentar a economia; e também querem se divertir em passeios e viagens.

O pouco zelo de estabelecimentos comerciais e da gestão de espaços turísticos, para ele, mostram o quanto a sociedade brasileira tem de avançar nas políticas de inclusão. Sobretudo no cumprimento da Lei da Acessibilidade (lei federal nº 10.098/2000). O estado ainda tem legislação própria. E os direitos de ir e vir de todas as pessoas remontam à Constituição Federal de 1988 e à Declaração Universal dos Direitos Humanos. A legislação é ampla e boa. Só falta ser obedecida.

image Pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida sofrem nas calçadas de Belém (Fábio Costa / O Liberal)

Entre os desafios de pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida, estão a falta de rampas de acesso; a falta de banheiros adaptados para diferentes necessidades; ausência de piso tátil; falta de profissionais fluentes na Língua Brasileira de Sinais (Libras) ou capacitados para lidar com pessoas com deficiências intelectuais ou condições específicas; elevadores adequados; transporte, do embarque ao desembarque; hospedagens adaptadas; e calçadas mais amigáveis. Isso tudo apenas como exemplos.

Com base no último censo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a APPD estima que cerca de 1 milhão de paraenses tenham alguma deficiência, seja física ou mental, ou algum fator que reduza a capacidade de locomoção. Em nível nacional, o IBGE apontou, em 2018, que 6,7% da população brasileira tenha alguma condição de deficiência ou restrição de mobilidade. Ou seja, aproximadamente 14 milhões de brasileiros que, ao pensar no Pará como local para visitação, talvez não encontrem estímulos, conforto e segurança suficientes para a viagem.

Os dados são estimados, mas mostram um potencial turístico e econômico subvalorizado. Ou simplesmente desprezado. Alguns espaços turísticos, culturais ou de lazer costumam destacar elementos de acessibilidade como atrativos para fins comerciais. Há quem invista de olho nesse público. Jordeci considera pouco.

"O Pará tem muito potencial. Mas falta investimento no turismo acessível. Essa é uma discussão que precisa ser puxada pelo Governo do Estado. A criação de um plano que respeite a nossa identidade amazônica de transporte — temos rios e alguns lugares só acessíveis pelas águas —, cultura e lazer. Mas pouco se fala sobre isso. Nós, que somos daqui, até damos jeito. Mas e quem vem de fora? Acho que nem 10% das vagas da rede de hospedagem esteja adaptada e pronta para receber esses turistas", analisa Jordeci.

Por Belém ser uma cidade histórica, há algumas coisas que são muito mais complexas de se solucionar. Por exemplo: áreas históricas tombadas, onde as calçadas são com pedras portuguesas, não há como alterar. Jordeci cita o Parque da Residência como um exemplo positivo de ponto turístico acessível, apesar de uma infraestrutura paralela que não colabora.

Como exemplos onde faltam muitos ajustes, Jordeci aponta falhas na Estação das Docas, Polo Joalheiro, Complexo Feliz Lusitânia, Parque Estadual do Utinga, Bosque Rodrigues Alves, Teatro Margarida Schivasappa e praças. Quando se fala em praias, bares e restaurantes, principalmente no interior do estado, a ausência de estrutura mínima se torna crítica. E chegar nesses locais por portos e terminais rodoviários evidenciam o despreparo desde o deslocamento.

A arquiteta Aíla Seguin, mestre em Acessibilidade, diz que garantir a estrutura de atendimento e locomoção a pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida é fundamental para o turismo. É, inclusive, importante até para quem não tem nenhuma necessidade específica. Que turista nunca chegou a um lugar e ficou confuso por não saber como chegar em determinados locais por falta de sinalização? Isso também é acessibilidade.

Aíla também reforça que não adianta fazer qualquer coisa e chamar de acessibilidade. Tudo precisa ser feito de acordo com normas. Uma simples rampa de acesso pode ser um perigo se for muito íngreme. 

Muitas pessoas podem pensar que a Estação das Docas seja um local acessível e atento à legislação, justamente pelo significado e importância que tem. Mas Aíla discorda. Na avaliação dela, as rampas são fora das normas, faltam corrimões, placas em Braille, intérpretes da Libras, cardápios em Braille... Essas e outras características valem para museus e igrejas, por exemplo. "A legislação é muito boa. Mas estamos atrasados. É um retrato do Brasil", conclui. 

Ministério Público ressalta elementos de acessibilidade já legislados e ainda assim descumpridos

Cabe ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) acolher denúncias de falta de acessibilidade e fiscalizar o cumprimento da legislação. A promotora de Justiça Elaine Castelo Branco, da 3ª Promotoria de Defesa de Pessoas com Deficiência, dos Idosos e de Acidentes de Trabalho da Capital, lembra algumas das determinações legais sobre acessibilidade.

"Rampas de acesso, corredores mais largos, elevadores em pontos turísticos e transporte público adaptado são apenas alguns elementos mínimos e básicos que ambientes de lazer devem oferecer. Esses aspectos são fundamentais para gerar acesso adequado e inclusivo às pessoas, sejam turistas ou moradores da cidade", destaca a promotora.

image O projeto Praia Acessível ainda não é tão amplo e permanente. Mas é uma das iniciativas que precisa de estímulo para o debate do Turismo Acessível (Oswaldo Forte)

Esses elementos, diz a promotora, servem para que as pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida possam viver de forma independente. A acessibilidade deve estar presente no meio físico, nos transportes, na comunicação e nos meios tecnológicos para garantir a qualidade de vida e gerar a inclusão.

Algumas maneiras de garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência física e/ou mobilidade reduzida são investimentos de baixo custo, como além de sinais luminosos e plaquetas em braile para pessoas com deficiência auditiva e visual. Ainda seria possível investir em semáforos inteligentes, que possam ampliar o tempo de travessia para pessoas com mobilidade reduzida e deficiência visual. Nos espaços de cultura e lazer, reforça a necessidade de guias treinados e preparados para garantir a ajuda e acesso aos turistas.

Sindicato diz que empresário não investe em acessibilidade por falta de retorno

De um lado, a APPD critica a falta de acessibilidade na rede de hospedagem e em bares e restaurantes, como um impeditivo para o turismo e lazer de pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida. Do outro, o Sindicato dos Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Pará (SHBRS) diz que os empresários, sobretudo da rede de hospedagem, não investem por falta de retorno financeiro para os custos de adaptar os empreendimentos.

Pelo decreto federal 9.296/2018, novos hotéis e pousadas deverão disponibilizar, no mínimo, 5% dos dormitórios adaptados. Os demais 95% dos quartos devem possuir as ajudas técnicas e os recursos de acessibilidade como: vão de passagem livre mínimo de 80 cm para as portas, barra de apoio no box; chuveiro com barra deslizante, desviador para ducha manual, campainha e sinalização de emergência sonora e luminosas; aparelho de televisão com receptores de legenda oculta e de áudio secundário, e telefone com tipologia ampliada e amplificador de sinal, entre outros.

Os dormitórios acessíveis não poderão estar isolados dos demais e deverão estar distribuídos por todos os níveis de serviços e localizados em rota acessível.

Estabelecimentos construídos entre 29 de junho de 2004 e 2 de janeiro de 2018 devem ter, no mínimo 5%, dos dormitórios com as características construtivas e os recursos de acessibilidade estabelecidos na NBR 9050, além e aparelhos que garantam a autonomia total dos hóspedes com deficiência. Ainda no decreto, outros 5% dos quartos devem possuir as ajudas técnicas e os recursos de acessibilidade padrão.

Hotéis e pousadas construídos antes de 29 de junho de 2004 deverão se adaptar numa modalidade chamada “adaptação razoável”, nos casos em que, comprovadamente, não for possível aplicar as normas estabelecidas no decreto. Essa comprovação requer laudo técnico assinado por arquiteto e urbanista ou engenheiro.

Fernando Soares, assessor jurídico do SHBRS, reconhece que o sindicato nem tem estimativas sobre o quanto da rede de hospedagem paraense está adaptada para pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida. Na maioria dos casos, diz ele, o que se tem é rampa de acesso e apenas em municípios mais desenvolvidos e na capital. Poucos empresários investem na adaptação total de um quarto por considerarem um gasto elevado. Ainda que a acessibilidade seja transformada em ferramenta de marketing.

"De cada 100 turistas, só 1 tem alguma deficiência ou dificuldade de locomoção. É pouco. Então o investimento também é pouco. Geralmente, esse público viaja para casas de família e não vai para muito longe. Quantas pessoas com deficiência se hospedaram pelo Círio? Poucos. Quase zero, talvez. Essas pessoas não viajam, talvez, por se desestimularem pela falta de acessibilidade. Nos interiores, nem rampa de acesso tem", pontua Fernando, de forma contraditória.

Fernando aponta a necessidade de se discutir o turismo paraense como um todo. E ressalta ser necessário que seja política integrada de governo, em contato com os empresários do setor. "Essa nova gestão tem se mostrado interessada e aberta a diálogo. Mas tudo acabou de mudar. Acreditamos que algumas medidas começaram a ser aplicadas a partir do ano que vem", conclui o assessor jurídico do SHBRS.

Para a advogada Andrenna Scaffi, especialista em acessibilidade, o turismo acessível tem potencial enorme. Mas quando a rede de hospedagem não compra a ideia, fica difícil todo o resto. "Se o setor hoteleiro começasse a pensar no turismo acessível e os governos estimulassem, teríamos maior procura", comenta.

"Turistas com deficiência e/ou mobilidade reduzida são vistos como minoria, mas essas pessoas movimentam a economia. Cidades acessíveis geram emprego e renda. Se uma cidade começa a oferecer acessibilidade, a procura pelo turismo nesse local aumenta. Infelizmente, nem a rede hoteleira, nem nossos portos e terminais rodoviários e hidroviários estão prontos para tudo isso. Aí o público nem questiona, pois nem sabe a quem reclamar", acrescenta Andrenna

O titular da Secretaria de Estado de Turismo, André Orengel Dias, reforça que o Governo do Estado tem se empenhado em discutir o turismo acessível, de forma ampla e integrada.

"Além de ser uma questão legal, que está sendo atendida em todos os projetos de infraestrutura que estamos conduzindo, a acessibilidade tem sido pauta das nossas discussões para além disso. Por exemplo: vamos publicar nos próximos dias um edital para eventos turísticos. Os projetos que têm elementos específicos de acessibilidade têm pontuação maior nas avaliações. Temos as praias Brandeira Azul. E estamos vendo parques ambientais e ecológicos, onde devemos realizar uma série de projetos que levem em conta a acessibilidade desses espaços", disse o secretário.

 

Portos da região do Marajó são considerados alguns dos piores para o turismo acessível

Na região do Marajó, o porto do Camará, em Salvaterra, é considerado um dos piores pela falta de acessibilidade. Apesar de conectar vários locais, é um espaço com rampas metálicas entortadas, passagens com obstáculos, escadas, vãos... Os funcionários de cada embarcação e até passageiros é que, voluntariamente, ajudam pessoas com deficiência. Ou ajudando na condução ou carregando. Para cadeirantes é, sem dúvida, um transtorno.

Mas não é mais fácil para pessoas que necessitem de muletas ou bengalas. Nem para idosos. Nem para uma mulher grávida ou obeso. Pessoas que possuem dificuldades e são ainda mais invisibilizadas, como ressalta Andrenna Scafi. Quando esteve grávida, em 2018, sentia muita dificuldade em se locomover.

"Muitas pessoas precisam pagar acompanhantes, carregadores e ter outros gastos extras por terem alguma deficiência. Acabam pagando duas passagens. Às vezes, as pessoas deixam de sair de casa porque sabem que o porto não é acessível e nem saem de casa. Ficam presas. Mas as pessoas se esquecem dos idosos, dos obesos, das grávidas, dos cegos... Muitas pessoas dependem do Camará, por exemplo, e é horrível", analisa Andrenna.

image Derci Pereira sempre tem dificuldades em se deslocar de Soure para qualquer lugar, pois ônibus e portos não estão aptos a atendê-la. Ela precisa suportar sempre que precisa. Mas para um turista, esse é um fato impeditivo para o passeio. (Igor Mota / Aquivo O Liberal)

Derci Pereira mora em Soure, no Marajó. Ela é cadeirante e presidente da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes de Soure (Apads), uma entidade que enfrenta dificuldades até para manter o próprio endereço. A cada três meses, ela precisa ir em Belém para cuidar do tratamento e resolver uma série de outras coisas. Até julho do ano passado, quando foi inaugurada a lancha golfinho que faz Soure - Belém direto, ela dependia totalmente do porto Camará. Mas entre Soure e o porto há uma estrada que demandava deslocamento em um ônibus (duas empresas disponíveis) e passagem por uma balsa.

O ônibus de uma das empresas que Derci usava tem um adesivo que indica um veículo adaptado a cadeirantes. Não é. A reportagem andou nesse veículo e constatou que é impossível para um cadeirante embarcar e desembarcar na própria cadeira de rodas. Nem há espaços especiais reservados. Derci era carregada para dentro ou entrava de muleta. A cadeira ia no bagageiro. Já a balsa, há um espaço para atracar a cadeira de rodas, mas só. Embarcar e desembarcar pelo leito da balsa é muito difícil.

"Nem na Golfinho é perfeito. A cadeira passa pela porta, mas com dificuldade. Mas os banheiros não são acessíveis, apesar de dizerem que são. Já entrei no banheiro uma vez e encontrei uma bicicleta dentro do banheiro acessível. Essas coisas são um insulto. Tudo é constrangedor. Nós queremos ter liberdade, sem precisar ser carregada por aí. A sensação é de que os limites são impostos. Não são nossos. Nunca me esqueço de uma vez em que, no Círio, peguei a balsa que vai para Icoaraci. Acabou a passagem, sem a minha reserva, e tive de ir sentada na escada. Começou a chover e um marinheiro que me ofereceu um camarote. Uma das piores experiências", relata Derci.

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