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Trabalho com T: empreendedorismo resgata pessoas trans excluídas do mercado de trabalho

Rafael Ferreira e Heitor Sebastian são empreendedores trans que transformam seus negócios em locais de resistência para a população LGBTQIAPN+

Tainá Cavalcante e Hannah Franco

De todas as letras da sigla LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros/Travestis, Queer, Intersexual, Assexual, Pansexual e Não-binários), é a T a que mais padece de um emprego formal no Brasil: segundo pesquisa divulgada pela Mais Diversidade, a maior consultoria de diversidade e inclusão da América Latina, em junho de 2022, uma a cada quatro pessoas trans não tem emprego no país. Entre os empregados, 41% estão insatisfeitos com a vaga ocupada. 

Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) traz outro dado alarmante: a prostituição caminha junto ao desemprego. Estima-se que 90% da população trans feminina no Brasil tem a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência. E esse índice começa muito antes da inserção, de fato, no mercado de trabalho. A pesquisa aponta que pessoas trans são expulsas de casa, em média, aos 13 anos. A partir disso, a realidade é ainda mais perversa: apenas 0,02% da população trans está em uma universidade, 72% não possui ensino médio e 56% não concluiu o Ensino Fundamental. Os dados são do projeto Além do Arco-Írios/AfroReggae. 

A realidade das pessoas trans é sinônimo de preconceito, exclusão, evasão escolar e consequente falta de qualificação profissional, corroborando para os índices altíssimos de desemprego acima citados - isso é, quando pessoas trans conseguem, pelo menos, chegar à maior idade para trabalhar, já que a expectativa de vida para esse grupo é de 35 anos, metade do da população geral, que é de 75. 

Empreender vira modelo de negócio e liberdade

Na contramão disso, o empreendedorismo surge como solução para o problema: o número de empreendedores no Brasil não para de crescer e, de acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), entre 2020 e 2021, a taxa de empreendedores no país chegou a 9,9%, ocupando o  7º lugar no ranking global. 

Para fugir dos altos índices de desemprego e violência, pessoas trans encontraram no empreendedorismo uma forma de mudar de vida. O formato de trabalho chega como um respiro que vai além de uma oportunidade de emprego: resgata pessoas LGBTQIAPN+, já que esses empreendimentos se tornam locais não só de trabalho, mas de inclusão, acolhimento e resistência.

Conheça alguns dos diversos empreendimentos construídos por pessoas LGBTQIAPN+ em Belém:

 

 

 

"Eu sofri muito preconceito e isso me desmotivou muito, estar ali naquele espaço me fez desistir do curso. Na chamada, ainda chamavam meu nome antigo, mesmo que eu já tivesse passado pela transição e isso me machucava muito. Eu também tive outros trabalhos onde eu passava mais ou menos um mês até eles darem uma desculpa para me demitir. Foi a partir daí que eu comecei a pensar e buscar algo que pudesse gerar uma renda pra mim", lembra o jovem. 

O espaço conta ainda com mais três profissionais trans e uma travesti indígena como tatuadora. "A nossa intenção é sempre aumentar esse mercado e dar oportunidade para essas pessoas, principalmente pra fortalecer e valorizar nosso trabalho", completa.

A Tman Barber também usa a visibilidade para ser um local seguro e de acolhimento para a comunidade. "Muitas pessoas chegam aqui com a gente e desabafam, já que tem um local só com homens trans que vão te receber. A gente sabe que aqui dentro não vamos sofrer nenhum tipo de preconceito, que não vamos ser chamados pelo nome antigo, que não vamos ter problema nem para ir ao banheiro, e tudo isso é uma dificuldade em outras empresas", lembra Rafael, ao citar algumas das principais barreiras para pessoas trans.

Apesar de estar se consolidando cada vez mais no mercado, Rafael ainda não tem o CNPJ da empresa, um cenário recorrente entre pessoas trans que decidem começar o próprio negócio. Uma das razões é o atraso da possibilidade de inserção do nome social no cadastro como Microempreendedor Individual (MEI).

Apesar do esforço recorrente do Sebrae e da garantia assegurada por lei ao direito desde 2016, pelo Decreto 8727/2016, apenas em abril de 2023 a medida foi autorizada e passou a ser adotada mais facilmente para travestis e transgêneros.

Trabalho formal: necessidade e desafios

Para analisar os desafios que essa população tem na hora de empreender, uma pesquisa realizada pela Nhaí!, uma consultoria em comunicação com foco em diversidade, mostrou que quase metade desses empreendedores (46%) ainda trabalham na informalidade, mesmo empresas com mais de cinco anos no mercado. Para Rafael, a falta de conhecimento foi uma das principais dificuldades ao começar um empreendimento.

"Eu não tinha conhecimento, não era formado por conta do preconceito que vivi na faculdade, mas eu tinha que saber sobre administração e controle financeiro. No início foi difícil, mas hoje a gente já tá aprendendo muita coisa", explicou.


Para o Sebrae, empreendimentos inclusivos se consolidam como espaços cada vez mais importantes na sociedade, principalmente com relação às "questões de gêneros e relacionadas a nichos de empreendedores e iniciativas diferenciadas", como explica Marcus Bastos, gerente da Agência Metropolitana do Sebrae/PA.

Apesar disso, o preconceito  continua sendo um desafio para a barbearia, um ambiente marcado historicamente pelo machismo e sexismo. "Eu percebi que as pessoas passavam aqui na frente do nosso estúdio e olhavam com aquele olhar preconceituoso. Já aconteceu de uma pessoa parar com o carro na frente e gritar 'Aí só corta cabelo de viado!', em um tom muito pejorativo", disse Rafael, que já esperava encarar essas situações de constrangimento, mas que ainda assim teve medo de expor que aquele era um local LGBTQIAPN+.

"A gente sabia o que ia enfrentar no nosso dia a dia, mas foi muito difícil no início, estávamos começando e não foi fácil ter que lidar com essa exposição. Agora, estamos aprendendo, mas no começo ficamos na dúvida se iríamos expor que somos LGBTs ou não, porque a gente sabia que isso seria um risco para nossa vida. Mesmo assim mas escolhemos visibilizar a nossa causa, botar a cara a tapa e mostrar para o que viemos", defende, ao acrescentar que a TMan Barber é "para que pessoas LGBTs se sintam respeitadas, amadas, acolhidas, se sintam importantes, especiais, porque de fato todos nós somos". “A gente só quer exaltar o que há de mais lindo em todos nós e a nossa competência", detalhou.


Começar seu próprio negócio e conquistar sua independência financeira fez muita diferença para ele, principalmente para sua autoestima e a forma como as pessoas o respeitavam. "Hoje em dia o dinheiro influencia até a forma como as pessoas te tratam e ver outras pessoas LGBTs tendo essa liberdade de compra, ver elas também em ascensão e conquistando sua independência financeira é inexplicável, sabe?", comemorou.

Empreendedorismo: de opção à escolha

Sebastian saiu do mercado de trabalho tradicional em 2016, quando começou a transicionar e as oportunidades foram se afunilando. "Na época da transição foi muito complicado, porque eu trabalhava quando era uma pessoa cisgênero, mas depois as pessoas começaram a falar que eu não estava nos padrões da empresa", lembra o empreendedor, que na época também trabalhava como Secretário da Região Norte da Rede TransBrasil, onde tinha acesso a dados sobre a realidade trans. "A realidade de pessoas trans era geralmente a prostituição, por não ter outras possibilidades, e esses dados me deixavam muito mal, emocionalmente falando", conta.

Uma pesquisa da Antra, realizada em 2021, mostrou que 88% das pessoas trans acreditam que as empresas ainda não estão preparadas para contratar transexuais, 4% estavam em emprego formal e 6% possuíam emprego informal. O restante informou à Associação que tinha a prostituição como fonte de renda. 

"Hoje em dia, falo que continuar sendo um empreendedor é uma escolha pra mim, mas no início foi a única opção. Hoje é o que eu quero pra minha vida. Eu até digo que eu vou fazer o que puder pra levar a palavra do empreendedorismo para as pessoas, sobretudo as para pessoas transexuais, LGBTQIA+, negras e indígenas, esse é meu foco", ressalta Sebastian.


O empreendedor também lembra que quando tirou o CNPJ da empresa, em 2016, ainda era preciso usar o nome de registro. "Tinha um problema de ser um empreendedor trans que era você não poder ser Pessoa Jurídica com nome social, mas podia colocar no nome fantasia", detalha. De acordo o Sebrae, esse direito foi, enfim, estendido e autorizado ao processo de formalização do MEI para pessoas trans em 2023.

Reconhecimento

Em 2018, Sebastian foi o primeiro homem trans a palestrar no Sebrae e considera esse um marco em sua sua vida.

"É muito importante estar ligado ao Sebrae, porque existem muitos cursos e muitas palavras importantes para a gente que está começando um negócio e também para quem já está no mercado. Isso ajuda durante todo o processo", ressalta Sebastian.

 

Atualmente, o Sebrae disponibiliza cursos online que podem ajudar na capacitação de pessoas trans para começarem seu negócio. 

Conheça a plataforma de cursos online gratuitos do Sebrae

"Aqui no Sebrae, todas as pessoas e grupos são bem recebidos. A gente enxerga sempre o negócio / a atividade econômica, e não quem está à frente desse empreendimento. Aqui todos são acolhidos", diz Marcus, gerente do Sebrae/Pa.

"A questão de gênero é interessante, porque trabalha em determinados focos de vulnerabilidade, nichos de mercado e existem demandas reprimidas nesse sentido que a gente apoia. Aqui nós atendemos todo tipo de empreendimento viavelmente econômico e sustentável", conclui.

Quer aprender mais sobre as pessoas LGBTQIAPN+? Assista o vídeo.

 


 

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