Paulo Martins: chef dos sabores da Amazônia para o mundo
Contribuição dele na pesquisa, divulgação e inovação no uso dos ingredientes regionais é fundamental para a valorização da gastronomia amazônica além das fronteiras do Brasil

É impossível se falar de Amazônia sem mencionar a gastronomia da região, dado o valor que a culinária tem não apenas por seus sabores diversificados, mas, em particular, por representar muito da identidade dos povos que constroem a região. Por isso, um arquiteto paraense em Belém tomou a decisão, a partir do aprendizado com a mãe dele, de divulgar os ingredientes amazônicos e inovar no uso deles para confeccionar novos pratos. Como resultado, chamou a atenção de gente de dentro e fora do Brasil para o potencial gastronômico do bioma amazônico. Essa pessoa era Paulo de Araújo Leal Martins, mais conhecido como chef Paulo Martins (1946-2010). Em poucas palavras, Paulo e a mãe dele, Anna Maria de Araújo Leal Martins (1925-2007), neta do ex-governador José Malcher), formam o ponto de partida de todo o movimento de valorização da gastronomia da Amazônia, e, por esse motivo, o Grupo Liberal lança uma série de matérias abordando a trajetória e o trabalho de Paulo umbilicalmente relacionado à Anna, num momento em que a região está no centro das atenções do mundo em 2025, com foco especial no uso sustentável dos recursos naturais.
A jornalista e escritora Lorena Filgueiras acaba de lançar o livro “Memórias de um filho do fogão - Biografia do chef Paulo Martins”, pela editora Lettera, com patrocínio da Vale. Juntamente com o trabalho desenvolvido pelo Instituto Paulo Martins e da atuação de profissionais do ramo culinário, o livro apresenta-se como uma fonte de informações acerca do legado de Paulo.
Esse trabalho surgiu do convite que Lorena recebeu de dirigentes do Instituto Paulo Martins para essa tarefa. Lorena Filgueiras aceitou de pronto e, então, passou nove anos trabalhando para a confecção da obra. O Instituto é presidido por Tania Martins (viúva de Paulo) e tem como vice-presidente Daniela Martins (filha) e como diretora executiva Joanna Martins (filha).
Paulo Martins era arquiteto de formação, tinha um escritório profissional, foi diretor da Codem, entre outras atividades, e foi se aprofundando tanto na cozinha para ajudar a mãe, Anna Maria Martins, a fim de dar vazão ao sonho dela de ter um restaurante, que “em determinado momento ele percebeu que era mais cozinheiro que arquiteto”.
“Mas ele era um cozinheiro que não queria importar costumes. Ele queria levar os seus. Ele arquitetou vários pratos, projetos. Ele era genial. Pensar em um festival gastronômico, há coisa de 25, 30 anos era muito inovador. E o Paulo foi lá e fez o 1º Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, mais na raça que com apoio. Ele quebrou e rompeu inúmeros paradigmas”, diz Lorena.
A renovação de mentalidade na sociedade por Paulo Martins situa-se no fato de que Belém se ressentia pelo fim da Belle Époque, quando era muito comum pessoas consumirem frutas que não eram da região, ainda que também apreciassem as nativas. Porém, Paulo Martins começa a levar os ingredientes regionais para fora. E ele levava mesmo no isopor. E, na época, as pessoas tinham vergonha de levar produtos no isopor, por causa dessa “herança” forte da Belle Époque. Mas, como pontua Lorena Filgueiras, “foi o Paulo que naturalizou isso, foi o Paulo que disse que era muito bacana levar isopor; era bacana, sim, ter farinha na mala, que podia levar fruta para fora”.
Jambu
“Por meio dessas ações dele, o Paulo poliu a nossa autoestima, porque seguramente se a gente vive esse hype da culinária paraense tem tudo a ver com a atuação do Paulo”, destaca Lorena. E dentre muitas histórias protagonizadas por Paulo Martins existe um que seu deu com Romulo Maiorana (1922-1986), idealizador e fundador do Grupo Liberal.
“O velho Romulo tinha um prato no ‘Lá Em Casa’ (restaurante da Família Martins) em homenagem a ele, que era ‘Bacalhau à RM’, uma posta de bacalhau acompanhada de arroz de brócolis. E em uma bela noite chegam o velho Romulo, o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-vice-presidente da TV Globo) e o Jô Soares (humorista - 1938-2022) no restaurante, quase fechando. E Romulo diz para trazer o bacalhau dele da cozinha, porque ele queria mostrar o prato aos dois. Só que por volta de meia-noite, não tinha mais brócolis nenhum na cozinha”, conta Lorena.
“Foi o Paulo que, num momento de enorme conhecimento, porque nada dele era feito por acaso, mas de genialidade e eficiência, pediu um maço de jambu, para dar uma salteada no azeite, vou misturar no arroz e vou servir. E quando chegou à mesa, especialmente o Boni e o Jô perceberam que ali tinha algo diferente, mas o Paulo não falou que era jambu, com medo de pegar ali um ralho do amigo”, como relata Lorena, destacando que naquela ocasião nasceu o Arroz de Jambu.
Paulo tinha consciência do que estava fazendo e se esmerava em fazer cópias primas, ou seja, criava e não se preocupava em reivindicar para si a criação. “Ele queria que os paraenses pudessem descobrir novos usos para os ingredientes tradicionais”. Assim, ele criou o Arroz Paraense, um dos pratos mais representativos da gastronomia amazônica. “Ele dizia que as criações dele pertenciam ao mundo”, ressalta Lorena Filgueiras.
Anna Maria e Paulo Martins - dona Anna quebrou paradigmas ao cozinhar para fora, para sustento da família — foram ousados em mostrar aos próprios amazônidas e para pessoas de outros lugares do Brasil e do mundo a riqueza e diversidade dos ingredientes culinários da Amazônia. Esse trabalho valeu, inclusive, a Paulo o título de "grande embaixador da cozinha paraense" e dona Anna foi homenageada com a instituição do Dia Estadual da Culinária Paraense, por meio da Lei nº 8.409, de 7 de novembro de 2016. Além disso, Paulo decidiu imprimir sua marca também, ao garantir novos usos (ou surpreendentes) aos ingredientes.
Isso se dá, como frisa Lorena Filgueiras, quando ele substitui o brócolis pelo jambu salteado, por exemplo, depois acrescentando tucupi ao arroz (que até então, sabia-se, era usado no tacacá, no pato e frango ao tucupi); ao colocar bacuri com camarão (dois sabores muito delicados); ao preferir o cacau amazônico ao chocolate. "A 'subversão' dele e de dona Anna Maria foi contrariar que o que 'era bom vinha de fora'. Eles amavam demais tudo que era daqui. E o grande trabalho que fizeram foi mostrar - começando por aqui, mas ousando romper barreiras geográficas - que a Amazônia tinha sabores, aromas e histórias que precisavam ser conhecidos/respeitados", ressalta Lorena.
“Comer vai muito além de a gente nutrir o corpo com todos os nutrientes que a gente precisa ter. A gastronomia tem esse poder, no tempo de hoje ela pode te evocar memórias nostálgicas. Eu morro de saudade de uma sopa que só a minha vó fazia e entendo que a gastronomia paraense é algo muito fundamental à autoestima do nosso povo, porque o paraense recebe como poucos. O paraense gosta de mesa farta, ele abre a casa dele na época do Círio para que tenha um intercâmbio gastronômico (com troca de iguarias entre as pessoas). Então, a gastronomia é uma das coisas mais ancestrais que a gente tem. Uma das cozinhas mais tradicionais, mais ancestrais do Brasil é a nossa”, finaliza Lorena.
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