Filme premiado, 'A Natureza das Coisas Invisíveis' transforma luto em delicadeza

Primeiro longa-metragem dirigido pela cineasta brasiliense Rafaela Camelo, o filme conquistou festivais ao redor do mundo

Estadão Conteúdo
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Alguns filmes chegam aos cinemas com a leveza de uma conversa sussurrada, mas carregam o peso de perguntas que nos acompanham a vida inteira. A Natureza das Coisas Invisíveis, em cartaz nos cinemas, é um desses trabalhos raros: sensível sem ser piegas, profundo sem ser hermético, político sem ser panfletário.

Primeiro longa-metragem dirigido pela cineasta brasiliense Rafaela Camelo, o filme conquistou festivais ao redor do mundo - de Berlim a São Francisco, de Seattle ao Uruguai - e chegou carregado de prêmios: três Kikitos em Gramado (incluindo Melhor Atriz Coadjuvante para Aline Marta Maia e Melhor Trilha Sonora), o Coelho de Ouro de Melhor Longa no Mix Brasil e reconhecimentos na Mostra de São Paulo. Mas mais do que os troféus, o que marca é a maneira como essa história sobre morte, luto e identidade consegue tocar diferentes públicos com a mesma delicadeza.

Perguntas que não se calam

A origem do filme remonta a 2018, quando Rafaela trabalhava em um projeto para o Ministério da Saúde. "Eu estava mergulhada no ambiente hospitalar, já que meu trabalho era, basicamente, encontrar histórias interessantes sobre pessoas que utilizam o SUS. Nesse processo, conheci uma pessoa que havia passado por um transplante de coração que me marcou muito. A partir dali, comecei a juntar os elementos que deram origem ao filme", lembra ao Estadão.

Mas o desafio era encontrar algo original. Existem muitos filmes coming of age que lidam com o luto e muitas histórias hospitalares que tratam da morte. Ela conta que o projeto ganhou corpo quando decidiu focar mais na experiência íntima das personagens do que em um conflito que servisse como motor da trama. "Busquei por algo mais introspectivo, mais contemplativo, que falasse sobre a experiência do luto atravessando mulheres de diferentes gerações", explica.

O período pós-pandemia trouxe ainda mais urgência ao projeto. "Pensar no cinema como um lugar onde se pode processar a experiência do luto, sem pressa e sem medo, me pareceu um bom caminho", diz.

Duas meninas, um verão, muitas despedidas

O filme conta a história de Glória (Laura Brandão) e Sofia (Serena). Elas têm dez anos e se conhecem durante as férias de verão em um hospital. Uma delas está com a bisavó internada. A outra, sem ter com quem ficar em casa, acompanha a mãe, enfermeira, ao trabalho. Entediadas e frustradas por perderem a folga escolar entre corredores brancos, elas formam uma amizade improvável, daquelas que só a infância permite, sem cerimônia, sem filtros.

O que começa como cumplicidade para escapar da monotonia hospitalar se transforma em algo muito maior quando as duas meninas e suas mães partem para um refúgio no interior de Goiás. Ali, longe da assepsia do hospital, em meio à cultura popular brasileira - benzedeiras, brincadeiras de criança, a terra vermelha -, o filme respira e revela suas camadas mais profundas.

A estrutura narrativa é, ela mesma, uma metáfora. "É como se, naquele ponto, o filme da forma que foi apresentado tivesse que morrer para outro se formar", diz Rafaela.

Um dos processos mais importantes para a diretora foi ressignificar a própria relação com o tema. "Um dos processos mais importantes foi afastar a ideia de morte da ideia de medo", revela. "As primeiras versões do filme ainda carregavam muito desse olhar infantil que eu tinha. Quando criança, começar a pensar sobre luto e finitude vinha sempre acompanhado de medo. Medo do desconhecido, da dor, desse fim absoluto. A princípio, era tudo o que eu conseguia enxergar".

Com o tempo, e especialmente ao longo do processo de fazer o filme, ao pesquisar e refletir mais profundamente sobre esses temas, ela explica, outras perspectivas começaram a surgir. E ela sente que amadureceu como pessoa e como cineasta. "Descobri uma outra dimensão da morte, como um lugar também de renascimento, algo precisa terminar para que outra coisa possa emergir. Isso me levou a uma visão mais ampla e, de certa forma, espiritualizada da vida, muito conectada também à cultura brasileira e às formas como a gente explica o que é intangível por meio de histórias, mitologias e crenças".

O filme acabou se tornando também uma forma de processar perdas pessoais. "Vivi algumas perdas importantes nos últimos anos, pessoas que marcaram minha vida e que já não estão mais aqui. O filme não é biográfico, mas existe ali um sentimento que compartilho, que nasce justamente dessas perdas e da forma como eu encaro o tema da morte hoje", confessa.

A coragem de não explicar

Um dos grandes acertos do filme está no que ele não diz, no que não sublinha. Sofia é uma menina trans, mas essa informação não vem anunciada com holofotes dramáticos ou pedagogia excessiva. Ela simplesmente existe, vive, brinca, sofre, interroga o mundo - como qualquer criança.

"O luto na trajetória da Sofia está ligado a uma despedida simbólica de uma identidade que não existe mais. Quis apresentar Sofia como qualquer outra criança - curiosa, esperta, cheia de desejos e medos - antes de qualquer rótulo", afirma a diretora.

É uma escolha política, sem dúvida, mas que não transforma o filme em manifesto. Ao recusar o didatismo, Rafaela faz algo ainda mais potente: normaliza a existência de Sofia sem apagar sua especificidade.

Mas tem mais. Para além da questão da identidade, Sofia ainda enfrenta a iminência da perda da bisavó (Aline Marta Maia), que está em coma. Quando a idosa consegue se recuperar parcialmente, todas partem para o sítio da família no interior de Goiás, onde passarão os últimos dias daquele verão. Tem mais ainda - mas é melhor evitar o spoiler.

O luto, no caso de Glória, vem das perdas cotidianas: ela cria laços com os pacientes idosos que a mãe cuida no hospital e precisa lidar com a morte deles de forma recorrente.

Contar essas histórias pelo ponto de vista das meninas trouxe complexidade à narrativa. "Eu não queria criar um filme infantil, mas sim um filme que dialogasse com quem se lembra de como era, na infância, pensar sobre a finitude. Parecia importante dar esse espaço ao olhar das crianças, um olhar que não é fantasioso no sentido de distorcer a realidade, mas que passa pela imaginação, pelo impulso de preencher o desconhecido com aquilo que faz sentido para elas".

Ao mesmo tempo, tudo tinha que ser palatável - mas não simplificado demais.

Mulheres que sustentam o mundo (e o luto)

Outro elemento que atravessa a narrativa é a questão do cuidado - e de quem, historicamente, carrega esse peso. O filme é povoado por mulheres: mães, meninas, avó, vizinhas. Os homens estão ausentes.

"A partir do momento em que percebi que o tema do luto e da finitude também atravessava o cuidado, e que, na nossa sociedade, o cuidado é um trabalho delegado às mulheres, tudo começou a se organizar quase de maneira espontânea. Claro que isso não significa que esse trabalho deveria recair sobre as mulheres, mas é uma realidade muito presente. Desde o suporte emocional até o cuidado prático, tudo costuma ser visto como uma função feminina", reflete Rafaela.

A diretora identifica dois polos no filme. "De um lado, temos uma maternidade solitária que está na parte do hospital: Antônia (Larissa Mauro), a enfermeira e mãe de Sofia, e Simone (Camila Márdila), mãe de Glória, que em determinado momento comenta que nem lembra mais quem, no interior, poderia ajudá-la a cuidar da bisa", diz a diretora. "Há aí um símbolo dessa desconexão com o território de origem e, ao mesmo tempo, de uma sobrecarga".

Quando chegam ao sítio, tudo muda. "O filme revela outra realidade, a de perceber que quem mais precisava de cuidado não era necessariamente a bisa, mas essas mães cuidadoras, essas mulheres que carregam tudo", afirma. "Surge então a pergunta: quem cuida de quem está cuidando?", questiona a cineasta.

Crianças dirigindo crianças (ou quase isso)

Trabalhar com as jovens atrizes Laura Brandão (Glória) e Serena (Sofia) foi um dos maiores desafios - e um dos maiores presentes - do processo. Durante dois meses e meio, Rafaela investiu em preparação. "Esse período incluía não só atividades ligadas ao roteiro, mas também momentos de convivência, de conversa, de brincadeira. Isso foi importante para que, no set, elas chegassem com clareza sobre como podíamos nos comunicar e o que era o trabalho de atuação", explica.

O resultado é uma espontaneidade rara. "Trabalhar com crianças exige estar disponível para os momentos de espontaneidade, que eram algo que eu realmente queria que estivesse no filme", diz. "O fato de elas estarem à vontade no set contribuiu muito para esse tom mais naturalista, como se elas realmente vivessem as personagens".

As meninas funcionavam também como um filtro criativo. Como atrizes, precisavam entender o que as personagens estavam passando. Se a proposta da cena era muito abstrata ou não fazia sentido para elas, logo não era bom para o filme.

E a relação de confiança permitiu momentos preciosos. "Elas contribuíram muito trazendo distrações naturais, gestos espontâneos e reações que enriqueciam o material. Entendiam o que o filme pedia delas, mas também traziam a espontaneidade da infância, que era essencial para a proposta", diz a diretora.

Um filme que viajou o mundo e voltou para casa

A recepção internacional surpreendeu a diretora, especialmente em festivais LGBTQIA+. "A forma como apresentamos Sofia, uma criança trans que aparece simplesmente vivendo sua vida, sem ter sua identidade questionada ou passar por situações de violência, teve uma resposta muito positiva", comemora Rafaela.

Ela acredita que isso é resultado da pesquisa e do cuidado em retratar de forma realista como é a vida de famílias que têm uma pessoa trans. "No filme, a identidade de gênero da Sofia não é tratada como um problema ou como um conflito central, porque, na vida real, essas crianças não passam o tempo inteiro pensando apenas sobre isso", diz. "Existem outras questões acontecendo. Essa escolha foi algo que o público destacou bastante, especialmente nesses festivais. E me surpreendeu ver como essa abordagem foi entendida e valorizada".

Agora, o filme volta para o público brasileiro - aquele para quem, afinal, sempre foi destinado. "Estamos em 26 cidades ao mesmo tempo, é uma felicidade tremenda chegar em tantos lugares", celebra. "Nossa expectativa é que seja visto, que encontre o seu público e que as pessoas se identifiquem com a história. É um filme que tem muitos elementos da cultura popular brasileira, como a benzedeira e as brincadeiras de criança. Espero que seja visto por diferentes gerações de mulheres", finaliza.

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