60 Anos de 'Um Dia Qualquer': pioneirismo de Líbero Luxardo no Cinema Paraense foi esquecido?

Veja o texto especial de Relivaldo Pinho sobre os 60 anos da obra de Líbero Luxardo

Relivaldo Pinho (especial para O Liberal)
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Para Cláudio Barradas. In memoriam.

É dia 26 de agosto, de 2025. Olho a programação do Cine Líbero Luxardo. Diz seu perfil: “o cinema de arte e de rua em Belém”. Nesse dia, não vejo nada sobre o cineasta que dá nome ao lugar.

Envio uma mensagem para um amigo jornalista, perguntando, “caríssimo não viste nada sobre o aniversário do primeiro longa-metragem do Pará, o filme ‘Um dia Qualquer’, do Líbero Luxardo, que completa 60 anos?”. Ele respondeu, “pior que não”.

Antes, eu havia dado uma vasculhada em alguns perfis e portais na internet. Nada. Meu amigo me retornou, dizendo, “pior que não tem nada mesmo no google”. Respondi, com espanto, “inacreditável”.

Onde estariam nossos professores, estudiosos, críticos, programadores, curadores, realizadores e cursos de cinema? Onde os editais, as secretarias e departamentos de cultura? E onde, santo Deus, estão os imprescindíveis vídeos de influencers culturais do Tik Tok? 

É isso mesmo caro leitor, o filme pioneiro do chamado “cineasta da Amazônia”, como ele mesmo se autodenominava, foi completamente ignorado na data de seu lançamento em Belém, em 26 de agosto de 1965.

Evidentemente, nós temos dois temas aqui. De um lado, o ostracismo a que se relegou a obra; de outro, a sua importância.

E sua importância é inegável. Líbero Luxardo começara cedo nos meandros do cinema e iria realizar, em 1932, um documentário chamado “Alma do Brasil” que tratava sobre a Retirada da Laguna, um episódio militar ocorrido durante a Guerra do Paraguai. Por esse filme, Líbero recebeu reconhecimento de gente como o crítico Paulo Emílio Sales Gomes que o denominou de “inovador”.

Na década de 1940, Luxardo aporta em Belém e começa a trabalhar para o Governo de Magalhães Barata, filmando cenas de sua administração, filmagens que viriam se tornar os cinejornais exibidos na época.

“Um dia qualquer” nasce, em parte, graças a esse bicho cinematográfico que, na época, mordia muita gente. Luxardo conseguiria patrocínio, mas empregava também seu dinheiro pessoal no empreendimento.

O filme narra a história de Carlos (Hélio Castro) que, ao perder tragicamente sua esposa Maria de Belém (Lenira Guimarães), vaga pela cidade através de suas ruas, seu monumentos históricos, praças e manifestações culturais.

Carlos é um sujeito inconsolado, melancólico, que se depara com uma cidade que ele relembra com ânimo quando estava ao lado da esposa, mas que, depois de perder a mulher amada, é uma Belém que ele estranha. 

image Hoje a “avant-première” de “Um dia Qualquer”, em A Província do Pará, de 1965. (Foto: Relivaldo Pinho.)

A primeira vez que vi o filme foi em 2003 em uma sala escura do Museu da Imagem e do Som, em Belém do Pará. O exemplar era péssimo, com imagens trêmulas, áudio picotado, cenas borradas e tudo aquilo que você se acostuma quando cutuca coisa antiga e abandonada.

Encontrar essas coisas era mergulhar em um mar de desencontros, informações incorretas e bobinas empoeiradas. Mesmo assim, fiquei impressionado. Surgia ali uma Belém que nunca tinha visto a não ser em fotos.

Estamos falando aqui de um tempo anterior ao youtube e coisas afins. Hoje, você pode encontrar o filme facilmente em estado muito melhor na internet. Vale a pena vê-lo.

Exatamente para apreciar uma Belém bem diferente do que nos acostumamos hoje. O crítico Pedro Veriano, como já escrevi em outro local, dizia que essa característica histórica se revelou, inesperadamente, como um aspecto relevante do filme.

Quando fiz meu primeiro texto sobre o filme de Luxardo, eu estava tão mergulhado em um cinema existencialista que, hoje, talvez, deva reconhecer que poderia ter pegado mais leve e falado mais de sua tentativa e pioneirismo.

Mas aquele texto não tinha essa pretensão. A pretensão era mostrar que Belém o filme nos dava. E, para isso, Líbero Luxardo alimentava muito a expectativa dos belenenses a respeito do seu filme.

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Ele escrevia sobre cinema, dava entrevistas e falava em programas de TV, e, em um deles, disse ser um cineasta inspirado em grandes diretores, especialmente nos neorrealistas. Mas essa história vou deixar para outro texto.

E se sua tentativa de mostrar um dia qualquer na capital paraense não foi um arrebatamento estético, como a maioria da crítica da época apontou, teve não só o mérito do pioneirismo, mas também a coragem de mostrar uma cidade na qual se misturam lembrança, sonho e realidade.

Carlos, o inconsolável e melancólico andarilho, parece ainda vagar pelas ruas sem destino, tendo apenas a memória de dias felizes como lembranças fugazes.

Parece que nós, hoje, na Belém, no Pará de 2025, nem isso procuramos mais. Não apenas a memória do passado, mas a memória daquilo que deveríamos lembrar, seja para celebramos ou questionarmos. Uma data nunca é apenas um vazio no calendário.

Parte disso ainda se deve à confusão sobre o ano de lançamento do filme, tomado por muitos como sendo o de 1962. Mas, depois de uma profunda pesquisa, pude mostrar que o filme é de 1965.

image Lenira recebendo parabéns no jornal A Província do Pará, em 1965. (Foto: Relivaldo Pinho.)

A verdade é que ignoramos, esquecemos, o lançamento do primeiro longa-metragem feito no Pará e isso é um sintoma. E ele tem várias razões. Impossíveis de tratá-las todas aqui.

Mas uma delas é sem dúvida a priorização da ideia de cultura como espetáculo, no nosso caso, a cultura como evento, como celebração momentânea em lugares, shows e atrações festivas das mais variadas espécies. 

Algum problema nisso? Não. Desde que isso não seja visto como o fundamento do que o Estado, a cidade e sua cultura devem celebrar e rememorar. O circo faz parte da estratégia de governar, mas a história demonstra que nem sempre só de leões e gladiadores a cultura se alimenta, nem o povo.

É dia 28 de agosto.  Volto à internet em busca de um texto, um post, uma menção sobre o aniversário do filme. Nada. Lembrei daquela sala escura, com cheiro de mofo, na qual, em 2003, vi “Um dia qualquer” pela primeira vez.

Naquele momento, uma cidade se abriria diante de mim. Agora, será que parte dessa mesma cidade parece não querer olhar pra si mesma. “Pior que não”.

(Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor)

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