Brasil leva 'Comigo Ninguém Pode' para Bienal de Veneza

Estadão Conteúdo

O Brasil estará na Bienal de Veneza de 2026 com Comigo Ninguém Pode. A Fundação Bienal de São Paulo anunciou a curadoria de Diane Lima para ocupar o Pavilhão do Brasil durante a 61ª Exposição Internacional de Arte - La Biennale di Venezia, de 9 de maio a 22 de novembro do próximo ano. A curadora e pesquisadora baiana selecionou Adriana Varejão e Rosana Paulino para compor o projeto, que pretende mesclar as trajetórias artísticas de ambas a partir das metáforas simbolizadas pelo nome da planta.

"O Comigo Ninguém Pode aparece como uma sugestão de estado de espírito, em bastante consonância com o que a gente vive hoje", explica Lima, em entrevista ao Estadão. Segundo ela, o título tem inspiração em uma obra homônima de Paulino, e busca refletir a ambiguidade relativa à ideia de proteção, toxicidade e resiliência, mas vai além.

"Ela também reflete como a manifestação da fé na nossa cultura brasileira e essa relação íntima com a natureza constituem parte fundamental da nossa expressão artística. A ideia é trazer a possibilidade de articular o diálogo a partir das obras."

Segundo Diane, a escolha de Adriana Varejão e Rosana Paulino, duas artistas que se destacam pelo estudo das feridas coloniais e da posição da mulher negra na sociedade brasileira, veio de um projeto antigo, de quando ela escreveu um texto para um catálogo de Varejão em 2002 na Pinacoteca de São Paulo, chamado A Performance da Ruína.

"Nesse texto, eu deixo uma pista sobre um potencial encontro entre as duas artistas, e quando veio a possibilidade de apresentar um projeto para o Pavilhão do Brasil, me veio de maneira muito forte a intuição de que eu deveria me aprofundar nesse diálogo que já havia identificado", conta.

Pensar este diálogo, segundo o trio, é o maior desafio a ser enfrentado nos próximos meses. "Tivemos um primeiro encontro semana passada e ainda estamos elaborando, não existe um projeto definido, explica Adriana, antes de acrescentar: "Acho que nossas obras já abordam temas nesse sentido de revisão histórica das feridas coloniais, desde os anos 90; existe esse lado comum muito forte da denúncia".

Rosana completa: "Neste momento, estamos mais atentas à questão conceitual, porque as obras não estão determinadas, esta é a primeira questão. Temos que olhar a planta com calma, pensar o que entra, quais obras precisarão ser feitas, pensando em conjunto as possibilidades."

Embora o desenvolvimento do projeto ainda esteja em fases iniciais, Rosana adianta que consegue enxergar algum tipo de metaformose conceitual ao unir seus trabalhos aos de Adriana. "Olhando os trabalhos, cada um por uma via diferente de análise, de olhar a formação do País e da terra, a gente acaba saindo só dos traumas e apontando também para esse mundo vegetal, talvez até como uma questão de esperança também", sugere. "Em um primeiro momento a gente tem a denúncia, mas paralisar só nesse momento é muito difícil. Chega um momento em que, curiosamente, vamos as duas para as plantas, e acho que esse mundo pode trazer muita esperança, outros caminhos e possibilidades."

Para Adriana, este é o momento de cada uma se familiarizar com a obra da outra de maneira aprofundada. "A ideia é que o diálogo seja protagonista, ele seja o maior artista, e que ele crie. Que as duas obras criem uma terceira potência, que vai carregar a força dessa narrativa que a Diane está propondo conceitualmente."

Transformação de significados

A exposição Comigo Ninguém Pode acontecerá durante a Bienal de Veneza, que carrega o tema In Minor Keys, conduzido pelo coletivo de curadores formado por Gabe Beckhurst Feijoo, Marie Helene Pereira, Rasha Salti, Siddhartha Mitter e Rory Tsapayi, após a morte inesperada da curadora Koyo Kouoh, idealizadora do conceito, em maio deste ano.

Segundo Diane Lima, as instâncias realizadoras do Pavilhão do Brasil não exigem que haja exatamente uma conexão com o tema geral da Bienal, mas este diálogo acontece na proposta de ressignificar a arte e seus limites, importante sobretudo devido ao simbolismo da edição.

"Tratando-se de uma Bienal tão especial, primeiro por ter sido um projeto concebido pela Koyo, depois pelo modo trágico como ela nos deixa; para mim, essa conversa aconteceu muito através do texto curatorial que ela nos deixou. "É um texto que foi construído num outro tempo, às vezes parece até que de outra dimensão", conta.

"Ela deixa como um guia, falando muito sobre essa relação de convocar artistas que produzam beleza para além da tragédia. Ela fala muito sobre a melodia dos fugitivos que se recuperam das ruínas e a harmonia daqueles que reparam feridas e mundos. A Koyo fala sobre convocar artistas que, como no jazz, transcendem os limites da forma, oferecem experiências sensoriais, que criam universos de imaginação", explica a curadora, que vê nessa transformação de sentidos uma ligação muito clara com os trabalhos de Adriana Varejão e Rosana Paulino.

"Quando pensamos nesse arco narrativo presente na carreira das duas artistas, vemos esses momentos acontecendo. Tem ali uma coisa sobre essa metamorfose, que é muito importante quando a gente vem desse lugar da denúncia das feridas e traumas coloniais. Pensar como a própria história do Brasil é ressignificada nos trabalhos de ambas, mas também como há um esforço na direção de uma liberação dessa imaginação, então há momentos onde existe uma fuga absoluta a um lugar mais místico."

O olhar do Brasil no mundo

Expoentes da arte e com exposições que ganharam o mundo, as artistas celebram a possibilidade de representar o Brasil refletindo um novo momento do País em escala global.

"Tenho prática como professora há muitos anos, e a gente vai vendo a situação política ir mudando, inclusive a geopolítica internacional", recorda Rosana, que deseja ir além do nicho das artes visuais. "Qual é o lugar da arte numa sociedade como o Brasil, nesse momento, como o Brasil se coloca? Ocupar um pavilhão brasileiro na Bienal mais antiga do mundo vai além também de só mostrar os trabalhos. Ao pensar o pavilhão por tudo o que ele significa dentro de uma produção internacional, uma produção que olha para si mesma, penso que a gente pode romper essa fronteira. Acho que pensar um pouco além só dessa produção vai ser um desafio incrível."

Já Adriana ressalta que se trata de um momento de pensar o diálogo, algo não muito comum no campo artístico. "É pensar como habitar uma mesma casa a partir de diferenças. As artes plásticas são moldadas por uma produção sempre muito individual, muito centrada na produção própria de cada um, na sua própria linguagem. Então, como é que é estabelecer um diálogo dentro disso, de poder existir esse lugar de troca?"

Ela recorda a experiência que teve neste sentido durante a mostra Entre os Vossos Dentes, em Lisboa, com a portuguesa Paula Rego. "Eu vi a potência de juntar obras, vi como a minha obra ficou muito mais potente em relação à obra da Paula e vice-versa, como, por um momento da exposição, ninguém falava de um artista ou de outro, mas falava sim do diálogo, do encontro. A minha maior alegria e expectativa é poder dividir esse lugar, poder estabelecer esse diálogo com Rosana, mediado por Diane, e construir algo mais potente do que a gente mesmo, do que se a gente estivesse isolado dentro do nosso próprio quadrado, digamos assim."

Quanto a expectativas, sobretudo em relação à recepção do público internacional, as três se mostram animadas com as possibilidades. "A gente quer entrar com o pé na porta, a gente quer que todo mundo fique de queixo caído. A verdade é essa", confessa Adriana. "Uma característica que eu acho que é da minha obra e da Rosana também, é que a gente sempre usou uma coisa característica muito do Brasil. Comigo Ninguém Pode vem carregado de um sentido de veneno, mas também de cura. Comigo Ninguém Pode não deve ser uma coisa que afasta, deve ser uma coisa que aproxima, estabelece um espaço sagrado também de cura", reflete a artista carioca.

Rosana completa afirmando que os materiais usados por ambas também terão grande importância. "Vamos repensar a história através de materiais que têm um sentido muito particular para a gente", completa Rosana. "Vai entrar costura, vai entrar cerâmica, vai entrar azulejaria num modo muito brasileiro."

"E a gente vai assumir isso de uma maneira, espero, muito feminina. Vamos ocupar essa casa, então a gente vai começar varrendo a casa. A primeira coisa que a gente vai fazer é botar um pé de Comigo Ninguém Pode na porta", finaliza Varejão. "A partir daí, a gente vai começar esse espaço de convívio e crescimento e construção."

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