A violência na literatura de Edyr Augusto
Leia o segundo texto do professor e pesquisador Relivaldo Pinho sobre a produção literária de Edyr Augusto. Este conteúdo especial e exclusivo de O Liberal é uma espécie de “guia” ou provocação, para leitores e espectadores observarem e saberem mais sobre o autor paraense.
“Era uma noite sem lua. Na escuridão, assaltaram o empurrador Jacarandá e as balsas Brasília e Linave IV, que vinham em comboio de Manaus. O empurrador foi fácil. Pouca gente. Nas balsas, havia seguranças e policiais. Por isso Jogador passou a faca no pescoço do primeiro e saiu carregando o corpo, mostrando a cabeça pendendo, quase decepada. Melhor desistir. Os guardas e os seguranças olharam em voltam e estavam cercados. Loro deu um tiro na barriga de um. Não gosto de macho me olhando. Olha pro chão, caralho! Joga as armas, se quiser ficar vivo! Jogaram, vai todo mundo pra esse lado. Tá todo mundo? Não, tripulantes ficam. Agora, se joga. Se joga todo mundo pra não levar tiro. Já. Deu dois tiros pro alto. Os seguranças e os guardas se atiraram. Ficaram rindo, deram alguns tiros nos que nadavam. Tu achas que eles vão chegar? Tomara que não”.
Acima, está um dos trechos de “Pssica”, livro de Edyr Augusto que foi adaptado para uma minissérie pela Netflix que estreia no próximo dia 20.
Nessa parte do livro, os piratas dos rios da Amazônia, também chamados de ratos d’água, comandados por Preá, praticam um dos seus crimes bárbaros.
Atentem para a crueldade da cena (atenção, ela continua, ainda mais cruel), mas atentem também para a linguagem utilizado pelo autor.
Aqui estão as duas faces da violência, do aspecto bárbaro, da barbárie, da literatura de Edyr Augusto. O seu lado ligado à realidade que, ao mesmo tempo, a obriga a ser bárbara em seu estilo.
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Essa dupla perspectiva (a palavra aqui é dialética) da barbárie é discutida pelo filósofo alemão Walter Benjamin, em um texto que já se tornou famoso intitulado “Experiência e pobreza”, de 1933.
Benjamin argumenta que, diante das características avassaladoras da técnica e da modernidade, ficamos pobres de experiências que pudessem ser transmitidas, contadas, narradas.
Distendendo a percepção benjaminiana, poderíamos dizer que a nossa experiência desse mundo moderno da imediatez, dos sobressaltos, da velocidade de nossas vidas, nos descolou de nossas experiências que nos ligam à tradição, à nossa história, à nossa herança cultural.
Diante dessa pobreza de experiência surge uma possibilidade, uma reação, uma barbárie positiva, explica Benjamin.
Essa barbárie positiva estaria presente na arte, por exemplo, de um pintor como Paul Klee que com traços matemáticos pretende recriar um novo tipo de representação da realidade.
As representações tradicionais da arte que pretendiam pintar as coisas de um modo realista ou figurativo não seriam mais suficientes diante de um mundo bárbaro que renega a tradição.
De certo modo, é o que a literatura de Edyr Augusto faz. Ela representa a barbárie da Amazônia através da barbárie positiva de seu estilo.
Dito de outro modo, diante de uma nova experiência na região, temos um novo estilo a representá-la.
Revejam o trecho citado de “Pssica” lá no começo deste texto. Preste atenção que, para descrever as cenas de extrema violência e sadismo dos ratos d’água, o autor introduz uma pequena descrição do ambiente.
Em seguida, a descrição se mistura com as falas dos personagens. Não sabemos com total nitidez quando começa uma e termina outra.
Não existem aspas, travessões, apenas pontos de exclamação para nos dar uma mínima noção de quem está falando e, mesmo assim, entendemos o sentido do que está escrito.
As frases não são apenas curtas e diretas, elas são propositalmente impactantes, como se diante de nós a cena se desenrolasse e nós, ansiosos, pedimos mais.
Em recente divulgação dos bastidores da minissérie baseada em “Pssica”, um dos diretores diz que “tem uma coisa da adrenalina da série, do frenesi que as coisas acontecem, que não te deixa respirar”. Pelo menos aqui a produção promete seguir a estética do livro.
Sim, porque Edyr Augusto, como ele disse certa vez, quer agarrar o leitor pelo colarinho. Por isso dizemos que não conseguimos parar de ler.
E isso não ocorre apenas pela curiosidade sobre o que vai acontecer, mas porque o texto, com a mão apertando nosso queixo, nos encara e diz: “ei! Onde você pensa que vai?”.
Não conseguimos parar de ler porque para uma realidade tão forte, para cenas tão bárbaras, talvez só reste um estilo fragmentado, veloz, implacavelmente econômico (curto, feito com pouco) e, ao mesmo tempo, tão anestesiante e sufocante.
Sim, caro leitor, uma anestesia provocada pela violência, uma violência provocada pelo estilo. Não é apenas uma violência estilizada, é muito mais uma estilização violenta.
Somente uma barbárie positiva de um texto assim pode representar uma Amazônia onde a barbárie não é apenas uma cena de filme.
Todos os livros do autor, com essa mesma temática, são feitos assim. A violência não é gratuita, ela é, programaticamente, mostrada por um texto sem adornos, sem grandes descrições existenciais dos personagens, sem descrever de forma barroca a Amazônia.
Perdemos, em grande parte, o sentido, a conexão, com uma Amazônia tradicional, ou com a representação que se fez dela.
Em Augusto, sai de cena o caboclo como símbolo de uma cultura e entram “Preá” e seus capangas “rindo, deram alguns tiros nos que nadavam. Tu achas que eles vão chegar? Tomara que não”.
Leia o primeiro texto deste conteúdo especial: Para além de Pssica: conheça Edyr Augusto e sua obra
(Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor do Centro Universitário Fibra)
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