ECA completa 35 anos: desafios e conquistas na proteção da infância e adolescência
A infância é, antes de tudo, uma construção coletiva. Requer políticas públicas, mas também afetos, escuta e presença.
Em outubro, quando celebramos o Mês das Crianças, somos convidados a refletir sobre o que significa, de fato, crescer com direitos e proteção. Em 2025, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 35 anos, lembrando-nos de sua importância como ferramenta de garantia de dignidade, autonomia e futuro para crianças e adolescentes e também das desigualdades e desafios que ainda persistem.
Em entrevista, a jornalista, mestra em Comunicação e estudante de Psicologia Andreza Alves, destaca que "Nos séculos passados, era comum que meninos e meninas assumissem funções laborais desde cedo, ajudando nas lavouras, nos ofícios domésticos ou nas pequenas manufaturas familiares. O brincar era considerado ocioso; o estudo, privilégio raro. Esse modo de compreender a infância produziu marcas profundas, tanto físicas quanto psíquicas, e ajudou a consolidar uma cultura que confundia maturidade com produtividade".
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A partir do século XX, esse olhar começou a se transformar, impulsionado pelo avanço das ciências humanas e por movimentos sociais que exigiam o reconhecimento da criança como sujeito de direitos. Foi nesse contexto que, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) se consolidou como um marco legal e simbólico na história brasileira, substituindo a visão tutelar e punitiva por uma perspectiva de proteção integral.
Uma nova lógica de proteção
Segundo o advogado Diego Martins, mestre em Segurança Pública e coordenador do coletivo Futuro Brilhante, o ECA “substituiu a lógica tutelar e punitiva pela doutrina da proteção integral, passando a reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e assegurando-lhes prioridade absoluta”.
Segundo ele, essa mudança foi decisiva para que o sistema de justiça deixasse de enxergar crianças como objetos de controle e passasse a tratá-las como pessoas em desenvolvimento, com voz e dignidade. O desafio, afirma Diego, está em transformar o que a lei prevê em realidade cotidiana. “O principal obstáculo é a efetivação prática das políticas públicas previstas no Estatuto. Ainda há defasagem de recursos e falta de articulação entre os entes federativos”, explica.
Ele ressalta que o Estado precisa garantir estrutura adequada para os serviços públicos, realizar concursos municipais e investir na qualificação de profissionais, “para que o atendimento à infância seja contínuo, humanizado e não dependa apenas da boa vontade de alguns gestores”.
O advogado lembra ainda que o ECA Digital (Lei nº 15.211/2025) trouxe atualizações necessárias, adaptando o Estatuto aos desafios contemporâneos. A nova lei aprimora os mecanismos de combate à violência sexual na internet e fortalece a segurança digital de crianças e adolescentes.
“Nossa legislação é uma das mais avançadas do mundo na proteção da infância e adolescência. O que se faz necessário, neste momento, é maior investimento para que seus princípios saiam do papel e se traduzam em proteção real”, pontua.
A infância e adolescência sob o olhar da Psicologia
O ECA representou mais do que um avanço jurídico, foi um passo civilizatório. O psicólogo Valber Sampaio, doutor e mestre em Psicologia pela UFPA, pós-doutorando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, especialista em Psicologia Jurídica e em Gestão e Planejamento de Políticas Públicas em Serviço Social, explica que o Estatuto “garante não só direitos, mas também a dignidade e a singularidade de cada fase do desenvolvimento humano”.
Segundo ele, durante muito tempo, a sociedade esperou das crianças uma maturidade emocional que nem os adultos possuíam, cobrando delas comportamentos e responsabilidades incompatíveis com a idade.
Para Sampaio, o trabalho infantil é uma das expressões mais dolorosas dessa herança cultural. “O trabalho precoce tira da criança a possibilidade de viver o lúdico, de desenvolver vínculos e autoestima. Tira o projeto de vida e o direito de sonhar”, afirma.
Essas experiências, segundo ele, podem gerar traumas duradouros: “Muitos desses sujeitos carregam medos, inseguranças e sintomas depressivos ligados à infância. São pessoas que não tiveram tempo de se reconhecer como crianças e cresceram sem se sentirem dignas de cuidado”.
O psicólogo destaca que fortalecer o respeito à autonomia das crianças e adolescentes passa pela escuta ativa e empática. “Quando dizemos a uma criança ‘para de chorar’ ou ‘isso não é nada’, estamos censurando emoções legítimas. A Psicologia nos ensina que acolher o que a criança sente é essencial para que ela compreenda suas experiências e se desenvolva de forma saudável."
Apesar dos avanços, Valber alerta que o acesso à saúde mental ainda é um privilégio restrito. “As políticas públicas, como os CAPS, são insuficientes. O atendimento ainda é fragmentado e o sujeito continua sendo visto de forma recortada. Precisamos garantir que a saúde mental seja tratada como um direito básico e que o Estado ouça essas vozes que ainda são silenciadas.”
A transformação social e o papel da assistência
A assistente social Rejane Pimentel de Almeida observa que o ECA não apenas criou mecanismos de proteção, mas também mudou o olhar sobre a infância dentro das políticas públicas. “O ECA trouxe um novo paradigma: crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser ouvidos, não tratados como objetos ou alvos de violência”, explica.
Segundo ela, o Estatuto impulsionou a criação de políticas integradas entre educação, saúde e assistência social, transformando a atuação dos profissionais da área. Mesmo assim, Rejane ressalta que a vulnerabilidade econômica ainda é um dos principais fatores de violação de direitos. “As desigualdades sociais expõem crianças e adolescentes ao trabalho infantil, à exploração sexual e ao aliciamento por redes criminosas. Quando faltam políticas públicas efetivas e orçamento adequado, as conquistas do ECA ficam ameaçadas”, alerta.
Para a assistente social, o fortalecimento da rede de proteção passa por serviços acessíveis, de qualidade e com financiamento contínuo. Ela destaca o papel de estruturas como o CRAS, voltado à prevenção e ao acompanhamento familiar, e o CREAS, responsável por atender casos de violência e abuso. Além deles, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) garante diretrizes nacionais e participação social, um ponto que, segundo Rejane, precisa ser valorizado.
“É fundamental reconhecer crianças e adolescentes como protagonistas de suas histórias, com direito à participação em conselhos, comitês e fóruns. Precisamos de investimento público, recursos humanos qualificados e políticas consistentes em todas as esferas”, defende.
Direitos que precisam ser vividos
Segundo Andreza Alves, "35 anos após sua criação, o ECA continua sendo um espelho das nossas contradições. É uma das legislações mais completas do mundo, mas enfrenta desafios para ser cumprida em um país ainda marcado pela desigualdade", enfatiza.
O aumento recente do trabalho infantil entre crianças de 5 a 9 anos e o recorte racial que mostra que 67,1% dessas crianças são negras ou pardas revelam que a proteção integral ainda não alcançou todos. A infância é, antes de tudo, uma construção coletiva. Requer políticas públicas, mas também afetos, escuta e presença.
Quem quiser saber mais sobre o tema pode acessar o portal do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o site do CONANDA, ou ainda procurar o Conselho Tutelar e os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS e CREAS) de seu município. Denúncias de violações de direitos podem ser feitas de forma anônima pelo Disque 100, um canal nacional que transforma indignação em ação concreta pela defesa das infâncias.
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