Presente no imaginário popular, folclore é celebrado neste domingo

'Vivemos num reino mágico e mítico chamado Amazônia', aponta o professor de filosofia, oficineiro de literatura, performista e contador de histórias Juraci Siqueira

Dilson Pimentel / O Liberal
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Contar histórias faz parte da natureza do homem amazônico em geral e do ribeirinho em particular. “E, nessas histórias, reside a nossa identidade cultural, nossa maneira de ser, estar e compreender o mundo”, afirma Antonio Juraci Siqueira, ao falar sobre O Dia do Folclore, celebrado neste domingo, dia 22 de agosto. Ele é professor de filosofia, oficineiro de literatura, performista e contador de histórias, fala sobre a importância desta data. “Vivemos num reino mágico e mítico chamado Amazônia onde as fronteiras entre o real e o imaginário, a exemplo do que ocorria na Grécia antiga, estão de tal modo entrelaçadas que se torna, difícil, senão impossível, distingui-las e separá-las”, diz.

Ele afirma que o homem amazônico convive com seus mitos que habitam o ventre denso das florestas e os leitos profundos e misteriosos dos rios, da mesma forma que o grego convivia com os deuses e semideuses que habitam o Olimpo. “Aqui, raramente se conta histórias na terceira pessoa já que, na maioria das vezes, o contador é, a um só tempo, o narrador e o personagem do seu próprio conto. Foi ele que viu e até matou o ‘rapaz de branco” que, ao cair n'água, veio à tona na forma de um boto tucuxi. Foi ela, a contadora, que foi seduzida pelo boto  ou fugiu da Matinta Perera”, contou.

Foi o barqueiro que viu a cobra grande e conta com tanta riqueza de detalhes, com tamanho realismo que o ouvinte acaba envolvido nas malhas da sua narrativa que chega a se ver na sua própria pele, sentir seu medo e deslumbramento diante do fantástico, do terrível, do imensurável. “Contar histórias, portanto, faz parte da natureza do homem amazônico em geral e do ribeirinho em particular. Nessas histórias reside a nossa identidade cultural, nossa maneira de ser, estar e compreender o mundo”, acrescentou  Antonio Juraci Siqueira, que tem um blog, batizado de “O Blog do Boto, como, aliás, ele é conhecido.

Amazônia é celeiro de lendas e mitos

Segundo ele, a Amazônia é um celeiro de lendas e mitos, tanto as lendas e mitos dos nossos ancestrais quanto as lendas urbanas como as que se encontram, por exemplo, no livro Visagens e Assombrações de Belém, do saudoso Walcyr Monteiro, aqui presente por ser impossível não citá-lo no Dia Nacional do Folclore, pelo muito que contribuiu com a pesquisa e a divulgação do nosso imaginário popular. “Além do mais, o folclore visto como a sabedoria do povo abarca toda a cultura popular e, mais do que nunca, se faz necessário mantê-lo vivo para a nossa própria existência enquanto povo”, afirmou.

Por fim, ele cita trechos do artigo "Os Imortais" de Machado de Assis, publicado em "O Espelho", em setembro de 1859: "As lendas são a poesia do povo; elas correm de tribo em tribo, de lar em lar, como a história doméstica das ideias e dos fatos; como o pão bento da ilustração familiar ...mas o povo crê, e não convém destruir as fábulas do povo. Este cultivo dia mitos não é, talvez, o aguardar laborioso das verdades eternas?"

Antonio Juraci Siqueira é marajoara de Cajary, município de Afuá, onde, ainda menino, descobriu a literatura através dos folhetos de cordel. Licenciado pleno em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, pertence a várias entidades litero-culturais e possui mais de 80 títulos individuais publicados entre folhetos de cordel, livros de poesias, contos, crônicas, literatura infantil, histórias humorísticas e versos picantes, além de poemas musicados por compositores locais.

Campo de leitura e de reflexão dos fundamentos formativos do 'corpus' histórico do Brasil

O historiador Geraldo Mártires Coelho diz que celebrar o Dia do Folclore no Brasil não deveria ser a comemoração de uma  efeméride como tantas outras que se celebram no cenário social brasileiro. Antes, afirma, deve ser objeto de um momento, de uma motivação para pensar e refletir sobre os  fundamentos históricos da sociedade e da cultura brasileiras. “Sim, nos domínios acadêmicos, e por conta, sobretudo, dos estudos antropológicos, o folclore brasileiro é, de há muito, um campo de leitura e de reflexão dos fundamentos e dos caminhos  formativos do corpus histórico do Brasil. É nesse sentido que é possível trabalhar o  folclore como linguagem e representação”, afirma.

Muitas e diferentes são as formas como as sociedades humanas constroem as  suas concepções e representações do mundo. “Se, nos domínios do saber científico, os  instrumentos e os mecanismos da construção da realidade são trabalhados pelo saber da  ciência, isso não significa que apenas o conhecimento científico explica e exprime as  visões de mundo das sociedades humanas”, diz Geraldo Mártires Coelho. Afirma também a cultura popular, não científica, igualmente presente no interior das  sociedades humanas, elabora as suas linguagens para explicar as já referidas visões de  mundo dos seus sujeitos sociais. As mitologias, os imaginários, as crenças são caminhos  seguidos por grupamentos humanos para explicar, compreender e se situar no interior de  um universo cujas linguagens e representações fenomenológicas precisam ser  explicadas e compreendidas. É aqui que se encontra o folclore, acrescenta.

Cobra grande e o boto emprestam sentido e significado a histórias e a personagens

O folclore, portanto, é uma das muitas linguagens com que os sujeitos sociais de uma dada sociedade se valem para explicar e compreender fenômenos, acontecimentos, figuras, personagens que são situados nos domínios do imaginário e da  imaginação social. “Se, para as sociedades cientificamente ordenadas, o sol é uma estrela, um astro, para muitas culturas humanas era uma divindade, um deus, portanto. Para os sujeitos sociais dessas sociedades, em seus devidos tempos históricos, a  representação do sol, pelo estatuto científico ou pela imaginação social, respondia e responde às suas respectivas visões de mundo”, observou. “Nas sociedades amazônicas, figuras como a cobra grande, o boto, a iara são criações do imaginário coletivo que explicam e emprestam sentido e significado a  histórias e a personagens. Veja-se a representação do boto e a narrativa em torno de sua  representação no imaginário social amazônico", afirma o historiador. Um homem belo, bem vestido, que se  aproxima de uma jovem que por ele se encanta. Dessa relação nasceria um filho do  homem-peixe, depois desaparecido do convívio das comunidades ribeirinhas.

Essa narrativa, na forma como por muito tempo percorreu os caminhos do  imaginário dessas mesmas comunidades, legitimava o estupro, a perda da virgindade de uma mulher, acrescentou Geraldo Mártires Coelho. "Assim, por meio dessa operação, o ato sexual feminino, ocorrido fora das  regras e dos limites sociais dominantes numa dada comunidade, seria projetado para os  domínios do mítico, um domínio alheio à realidade humana. Assim, afirma, “a imaginação social, representada pelas linguagens e representações do  folclore, empresta sentido e significado a fatos, a acontecimentos que escapam à  compreensão objetiva dos sujeitos de um dado universo social”, acrescentou. O estudo do folclore como uma dada linguagem social, permite  que esse mesmo universo disponha de um sentido e de um significado como  representação cultural”.

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