Olarias mantêm a tradição secular com referências contemporâneas na cerâmica icoaraciense

Da Olaria do Espanhol à Cerâmica da Família Sant'ana, a arte cerâmica do Paracuri demonstra as potencialidades da cultura paraense

Vito Gemaque
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A origem da cerâmica em Icoaraci remonta a vários séculos de história no distrito de Belém. Apesar de manter a forma de produção do início do século XX, a arte cerâmica icoaraciense passou por diversas transformações ao longo do tempo e tem se adaptado com referências contemporâneas que vão das artes plásticas e do design à arquitetura. O bairro do Paracuri, em Icoaraci, reúne, a poucos metros de distância, dezenas de olarias – espaços de produção cerâmica – que passam de geração em geração, esculpindo no barro as mais diferentes formas.

Conhecida por ser um polo cerâmico, Icoaraci produz diariamente milhares de peças de todos os tipos, tamanhos e referências. A Olaria do Espanhol é a mais antigas em atividade, com 122 anos de história. Fundada à beira de um dos igarapés da bacia do Paracuri, que auxiliava na chegada da matéria-prima e no escoamento da produção, a olaria foi responsável por um dos momentos revolucionários da cerâmica icoaraciense – a introdução do torno e do forno a lenha.

O jovem João Croelhas, de 16 anos, vindo de Palma de Maiorca, na Espanha, trouxe consigo, no início do século XX, o conhecimento na bagagem. Fugindo da pobreza na Europa, Croelhas se fixou em Icoaraci em 1903. No número 2116 da rua Santa Isabel, ele estabeleceu os novos meios produtivos que permitiram ampliar em larga escala a então rudimentar fabricação de cerâmica.

O torno de madeira promove o giro da argila em cima de uma plataforma redonda movida pelos pés do artesão, o que possibilita moldar o barro com muito mais rapidez. O equipamento reduziu o tempo de produção de uma peça de uma hora para apenas um minuto.

Hoje, a Olaria do Espanhol é administrada pela terceira geração da família, sob a liderança do mestre Ciro Croelhas, de 60 anos. A olaria passou do avô para o pai de Ciro, José Croelhas, e depois para ele. “A gente nunca perdeu a origem, que é sempre fazer cerâmica utilitária”, enfatiza.

ENTENDA AS ETAPAS DA PRODUÇÃO CERÂMICA 

Olaria do Espanhol

A produção começa com a chegada da argila, que vai para as mãos do oleiro. Um deles é o mestre Léo Croelhas, de 77 anos, que produz sozinho mais de 500 peças por semana. A rapidez com que transforma o barro impressiona. Ele começa limpando a argila, retirando raízes, folhas e pedras. Em seguida, esculpe a peça, que seca nas prateleiras durante a evaporação da água, processo que pode durar de cinco a 20 dias, dependendo do clima e do tamanho. Totalmente secas, as peças são polidas e depois levadas ao forno, onde a temperatura chega a 800ºC.

As peças utilitárias de cerâmica foram, ao longo do tempo, substituídas por produtos de plástico e metal. Antes, eram produzidos diversos objetos, como tubulações, pinicos, manilhas, moringas e o famoso filtro de barro – único fabricado desde o início da olaria. Os valores variam de R$ 3, para pequenos objetos de terrário, até R$ 170, para filtros com torneira e vela. Segundo mestre Ciro, “algumas peças ressurgiram, outras apareceram, mas o filtro é a única que nunca deixou de ser produzida”. “É a nossa peça mais icônica”, confessa.

Olaria do Espanhol história

Outro destaque é o alguidar. Em 2024, a Olaria do Espanhol produziu 60.083 peças, das quais 21.200 eram alguidares, recipientes circulares com bordas largas, muito utilizados em rituais religiosos afro-brasileiros. “De 70% a 80% das peças são para eles [afro-religiosos]. Fora as lojas que também vêm comprar, porque você não encontra quem faça alguidar. Eles tomam muito espaço no forno”, relata.

Muitos artesãos iniciaram na Olaria do Espanhol antes de abrirem suas próprias oficinas. No auge, estima-se que existiam 200 olarias em Icoaraci. Hoje, esse número não ultrapassa 80. Para preservar essa história, Ciro Croelhas criou o Museu da Cerâmica Olaria do Espanhol, onde narra a trajetória da família e da cerâmica local. “Hoje estamos em um diferencial, porque, além da olaria funcionando, temos também o museu. Como a gente tem toda essa história, criei esse museu para que a gente contasse de maneira mais fácil nossa história”, revela.

Ciro Croelhas da Olaria do Espanhol

No museu, é possível conhecer moringas com alça, bilhas redondas e as bilhas da noite, peças extintas. Com 122 anos de história, a Olaria do Espanhol também está nas redes sociais e realiza oficinas para passar o conhecimento secular para pessoas interessadas em aprender o artesanato na argila.

Reinvenção pela criatividade para um novo tempo na olaria da Família Santana

Uma das profissões mais antigas do mundo tem se reinventado com criatividade. Os ceramistas icoaracienses têm encontrado novas formas de divulgar seu trabalho. A Cerâmica da Família Sant’Ana mostra que é possível manter a tradição com novas referências e práticas sustentáveis. Localizada na travessa Soledade, nº 686, no Paracuri, o espaço revela as potencialidades da arte cerâmica.

As olarias, aos poucos, se organizam para apresentar a cerâmica de Icoaraci ao mundo. Em parceria, criaram a Rota da Cerâmica, que inclui visitas à Olaria do Espanhol, à Escola Liceu de Ofícios Mestre Raimundo Cardoso, à Cerâmica da Família Sant’Ana e à Feira do Artesanato do Paracuri, para mostrar a riqueza desta arte.

A Cerâmica da Família Sant’Ana está na transição geracional. Criada pelo mestre Guilherme Santana, de 63 anos, a irmã Rosa Santana, e a esposa Marly Santana, conta hoje com a participação da filha de Guilherme, Maynara Santana, de 33 anos, e do esposo Sebastian Santos. Os fundadores aprenderam o ofício com a mãe Fernanda Santana, que trabalhou na Olaria do Espanhol.

Mestre Guilherme começou na profissão aos 13 anos e foi professor de cerâmica no Paracuri. “Para fazer cerâmica precisa dos quatro elementos da natureza: a terra, que é a matéria-prima; misturada com água, moldada para dar forma; depois essa água é retirada; e a peça passa pela queima, que transforma a argila em cerâmica. Ela é responsável por grandes mudanças na humanidade”, ensina.

O espaço próprio surgiu como um barracão em 1999 e cresceu. Hoje, conta com loja na frente da oficina, onde se destacam as imagens estilizadas de Nossa Senhora de Nazaré, esculturas e até amplificadores de som de cerâmica para smartphones. Uma das inovações da oficina da família Santana é a substituição do forno a lenha por versões elétricas ou a gás, mais sustentáveis e com maior controle de temperatura.

Família Santana

A cerâmica de Icoaraci resulta da fusão da cerâmica europeia com a iconografia das culturas locais. “Nossa cerâmica é própria de Icoaraci. Começou como utilitária e depois incorporou grafismos regionais que a definiram como cerâmica icoaraciense”, explica o mestre. Ele define a própria cerâmica como “contemporânea, mas que guarda elementos da cultura como forma de preservar e respeitar a tradição”.

O mestre se preocupa com o futuro da arte sem que haja novos artesãos ocupando o lugar dos antigos. “Ao longo dos anos, a gente percebe uma fala dos artesãos sobre a necessidade de políticas públicas. Eu entendo que sim, mas é preciso também que façamos a nossa parte. A gente precisa se unir. Percebo uma individualidade na categoria. Para haver um desenvolvimento pleno e duradouro, é preciso criar mão de obra qualificada, porque hoje temos muita dificuldade. Os mestres estão parando, muitos morreram, alguns estão idosos. Precisamos que a juventude assuma”, afirma.

Olaria da Família Santana

Uma parte dessa juventude é Maynara e o seu esposo Sebastian Santos, que pensam e criam novas peças com referências de arte e design. Maynara acredita em atuação conjunta com o poder público e organização dos artesãos. A Rota da Cerâmica é um exemplo. “As pessoas saem daqui com muitos depoimentos positivos sobre o quanto ela é legal, sentindo que estão conhecendo a própria história. Esse movimento tem que crescer”, reforça.

Sobre o incentivo à produção cerâmica de Icoaraci, a Prefeitura de Belém informou que “o distrito abriga mais de 80 olarias, com cerca de 90% da produção no bairro do Paracuri, rico em argila e berço da tradição ceramista. A atividade movimenta a economia local e garante sustento a centenas de famílias, sendo parte essencial da identidade do distrito”. A Feira do Paracuri também recebe apoio municipal.

A gestão atual afirma manter diálogo com os ceramistas e estuda ações para formação, acesso a crédito e fortalecimento do setor, com o objetivo de preservar a tradição e impulsionar novas gerações de artesãos.

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