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Invisíveis de Belém: quase 2,5 mil pessoas sobrevivem em situação de rua na capital

Violência urbana e dependência química são os principais desafios dessa população, que tem serviços de apoio, mas precisa conviver com particularidades difíceis de vencer

Fabyo Cruz / O Liberal
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A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 73 anos no final do ano passado, diz que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, porém, no Brasil, muitas pessoas vivem de forma precária nas ruas. Em Belém, estima-se que existam cerca de 2,4 mil cidadãos estejam vivendo em situação de rua, segundo dados da Fundação Papa João XXIII (Funpapa). A falta de emprego, conflito familiar, dependência química e problemas mentais são alguns dos motivos mais comuns que levam indivíduos a deixarem seus antigos lares.  

É importante ressaltar que o número de pessoas em situação de rua é flutuante por causa da quantidade de indivíduos que entram ou saem da extrema pobreza, assim como também por motivos de falecimento ou migrações. As estimativas são baseadas nos registros realizados em atendimentos médicos nos espaços públicos.

Na avenida Presidente Vargas, em Nazaré, bairro nobre da capital paraense, cercado por prédios residenciais e comerciais, Doralice Santana, 47 anos, depende da doação de alimentos, dinheiro e fraldas infantis para cuidar dos netos. Sentada em frente a uma farmácia, juntos de duas crianças pequenas, sendo uma delas de colo, ela contava com a caridade de quem por ali passava, com objetivo de conseguir quantia suficiente para pagar um quarto em uma casa ou hotel popular.

“Ontem mesmo eu e essas crianças dormimos na rua”, desabafou Doralice. A paulista conta que veio para Belém, há mais de um ano, em busca de encontrar os filhos que haviam fugido e tentar ajudá-los a abandonar o vício com as drogas. “A minha filha teve seis crianças, ela é usuária de drogas, por isso, não consegue cuidar dos filhos delas direito. Já eu fico aqui, pedindo ajuda para cuidar dos meus netos. Mas estou tentando conseguir uma passagem para voltar a São Paulo, uma assistente social disse que ia arranjar para mim, mas até agora nada”, contou.

image Qualquer lugar precisa se tornar um abrigo contra a violência e contra o clima para se ter onde dormir, um dia de cada vez (Filipe Bispo / O Liberal)

Dormir em segurança e ir ao banheiro são desafios

Ela diz que paga uma diária de R$ 40,00 para conseguir dormir com os netos em um quarto, entretanto, nem sempre consegue dinheiro suficiente para se manter durante a semana. "Às vezes as pessoas dormem na rua não porque querem, mas por não conseguirem pagar aluguéis. Nós fomos despejados do último lugar em que estávamos porque não tínhamos mais dinheiro. Se tivesse uma casa de apoio seria melhor para acolher as minhas crianças", acredita Doralice.  

Para conseguir tomar banho, ela e sua família precisam ir ao banheiro da praça da República, onde cada um tem que pagar R$3,00. Quando eles não têm dinheiro para isso, algo que ocorre com frequência, recorrem a uma bica d'água no mesmo local, mostrando as dificuldades que possuem em relação à higiene pessoal, em meio à pandemia do coronavírus. “Na maioria das vezes não temos dinheiro nem para comer, quanto mais tomar banho”, diz Doralice.

Ela afirma que uma equipe de profissionais de saúde da prefeitura de Belém chegaram a dar orientações e distribuir máscaras, além de álcool gel, às pessoas em situação de rua que vivem próximas à praça da República. No entanto, as condições desfavoráveis fizeram com que ela contraísse a doença e fosse internada no Hospital de Campanha do Hangar. “Eu entrei no vale da morte, quase morri, passei 20 dias em coma. Primeiro fui atendida no posto de saúde de Outeiro e depois fui encaminhada para o Hangar. Fiquei só pele e osso, todo dia sofria de dores, relembrou.

A dependência química contribuiu para que Letícia Ramos, 30 anos, saísse de casa muito cedo. O contato inicial com as drogas ocorreu na infância, aos 12 anos. Tempos depois, na adolescência, já vivendo nas ruas, teve o primeiro filho aos 14 anos. Devido ao vício em entorpecentes, ela achou melhor entregar a criança para os cuidados da mãe, pois não queria que o menino convivesse em um ambiente inapropriado, sujeito a diversos riscos à sua vida. O mesmo aconteceu com o segundo filho, desta vez uma menina.

Letícia diz que sua casa, atualmente, é a praça Floriano Peixoto, no bairro de São Brás, em Belém, onde divide espaço com o companheiro Jessé Demétrio, 26 anos, e a estátua de Lauro Sodré, chamado pelo casal de “O Pensador”. Nesse local, eles conheceram outras pessoas, que de alguma forma passaram a ser sua nova família. “Por causa do vício das drogas não consegui mais aproveitar as oportunidades para trabalhar. Larguei tudo. Às vezes, tenho contato com a minha família, raramente vou em casa, mas eles sabem que eu decidi morar na rua”, comentou.

Questionada sobre a frequência de assistência pública que ela recebe, Letícia conta que raramente consegue medicações e vacinas nos atendimentos médicos realizados pela equipe multidisciplinar do Consultório de Rua, da Secretaria Municipal de Saúde (Sesma), os visita. Ela e o companheiro contam que às vezes conseguem tomar banho e comer no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), em São Brás, administrado pela Prefeitura de Belém, por meio da Funpapa.

O casal conta que se sentem invisíveis para a sociedade e lembram de casos de preconceito e violência nas ruas. “A gente tenta mudar, mas as pessoas não dão oportunidade, já nos olham com olhar torto quando subimos nos ônibus para vender bombom, principalmente com ele que usa tornozeleira eletrônica", diz Letícia.  “Já tentaram nos tirar à força daqui [praça], já fomos agredidos só porque estávamos dormindo aqui. Nós estamos lutando para sair da rua, mas é muito difícil conseguir o apoio de alguém e vencer a dependencia”, confessa Jessé.  

Para se alimentarem e se vestirem, eles e os amigos que se conheceram nas ruas, saem batendo de porta em porta e resgatando roupas velhas e restos de alimentos que são descartados nas feiras. “A gente se vira como podemos, pedimos nas casas, catamos ossos despachados dentro do mercado, quando é de noite, pegamos as marmitas que são doadas, mas não são distribuídas todos os dias. Só que não é só comida, também precisamos de roupa e lençol, só que pouca gente faz essas doações, e o pouco que temos, se ninguém reparar, ainda é levado daqui”, conta o companheiro de Letícia.

image O entorno do Mercado de São Brás é um dos principais bolsões de pessoas em situação de rua. De vez em quando, essas pessoas formam comunidades que cuidam uns dos outros. (Filipe Bispo / O Liberal)

Empatia e mão amiga são essenciais para a sobrevivência

Enquanto as esferas do estado e município tentam ajustar políticas públicas com a intenção de melhorar o atendimento a essas pessoas sem endereço, grupos de voluntários se organizam e mobilizam a sociedade para ajudar e amenizar as dificuldades de quem vive nas ruas. Um dos grupos que realiza esse tipo de trabalho é o “Partilhar”, idealizado por Laiana Damasceno, em junho de 2020.

O grupo atua com ações que ocorrem sempre na praça Waldemar Henrique, localizada no bairro do Reduto, todo final de semana, por volta das 19h. Durante as ações são distribuídas comidas, roupas, cobertores, água, entre outros utensílios. “Todo mundo tem paixões, talentos, amor por algo, mas existe uma coisa na minha vida que é o Partilhar, que desde o primeiro dia mexe bastante comigo e tenho certeza absoluta que este é o motivo pelo qual estou no mundo. Pelo Partilhar me empenho, me doo para proporcionar um momento especial a alguém”, diz Laiana.

Ela conta que antes surgiam várias ideias em sua mente, somada a uma vontade grande dentro do seu coração em ajudar o próximo. “E quando penso em tudo, logo me imagino lutando, ainda mais, não por caridade, mas por igualdade com todo amor que passou a existir em mim graças ao Partilhar. Ser idealizadora desse projeto é compartilhar todo meu amor, tempo e felicidade e, hoje, não abro mais mão disso”, afirmou.

image A praça Waldemar Henrique e outras áreas do centro histórico de Belém são alguns dos mais comuns locais de reunião de pessoas em situação de rua na capital (Filipe Bispo / O Liberal)

Assistência social em tempos de covid-19 precisou ser reforçada

O programa Consultório na Rua, da Prefeitura de Belém, realiza atendimentos médicos em pessoas em situação de rua, de segunda a sexta, das 7h às 20h, feito três equipes que atuam no distrito de Icoaraci e territórios adjacentes, áreas próximas ao Ver-o-Peso, além dos bairros próximos de São Brás. Por conta da covid-19, as ações chegam a serem estendidas para alguns finais de semana.

Rita Rodrigues, coordenadora do Consultório na Rua, explica que pelo fato do programa possuir uma equipe itinerante, são realizados mapeamento das áreas com maiores concentrações de  pessoas vivendo nas ruas em condições de extrema pobreza. Em São Brás, a maior concentração ocorre nas proximidades do Memorial Magalhães Barata e na última estação do BRT. “Por serem lugares que reúnem o maior número de pessoas, nossas equipes costumam visitá-los duas vezes por semana”, informou.

Nesses lugares são realizados atendimentos clínicos de enfermagem, com verificação se existem algum tipo de sintomas relacionados a covid-19, como febre, coriza e dores no corpo. “Esses sintomas dentro da população de rua precisam ser melhor avaliados pela própria vulnerabilidade social e, às vezes, pelo uso abusivo de drogas. Então, precisa realmente da avaliação clínica, da enfermagem  e muitas vezes de uma testagem, que está sendo realizada nas ruas”, explicou.

Entre as ações voltadas exclusivamente para conter o avançar da doença entre a população de rua,  o programa promove a distribuição de máscaras e sabão líquido. No entanto, há restrições para a distribuição do álcool em gel devido ao próprio perfil da população, com objetivo de evitar ingestão. Mais de 1.500 pessoas em situação de rua já receberam ao menos a primeira dose da vacina anticovid, afirmou a coordenadora do Consultório na Rua. Em julho do ano passado foi promovida a primeira ação para vacinação do público, que continua de maneira efetiva em vans e postos físicos, como Centro Pop, São Brás, e a Casa Rua, durante o período da tarde.

De acordo com Rita Rodrigues, na primeira onda da doença, em abril de 2020, quando ainda não haviam testes, cerca de 200 pessoas apresentaram sintomas leves na clínica da covid-19, dentro do abrigo temporário que foi montado dentro do Ginásio Altino Pimenta, e funcionou de maio a outubro daquele ano.  Em 2021, a partir de uma parceria da prefeitura com o governo estadual, escolas da rede pública de ensino também funcionarão como abrigos. Nesses lugares já haviam testes e 147 pessoas testaram positivo para a doença. Atualmente, no mês de janeiro, estão sendo realizadas testagens para o público, entretanto, ainda não há dados disponíveis.

A prefeitura de Belém, por meio da Funpapa, coordena dois espaços de acolhimento:  Camar 1, que abriga somente homens adultos de 18 a 59. E o Camar 2, que abriga mulheres e grupo familiar. A Fundação Papa João XXIII (Funpapa) informa que além dos espaços de acolhimento, também possui dois Centro POP, que são equipamentos de referência no atendimento a pessoas em situação de rua, localizados em São Brás e o outro no distrito de Icoaraci.

Segundo a Funpapa, nesses lugares, a população em situação de rua recebe atendimento psicossocial e encaminhamentos para as demais redes de garantias de direitos, como a de saúde e educação. Dentro dos espaços de acolhimento também são ofertados cursos profissionalizantes para que eles possam a curto e médio prazo a inserção no mercado de trabalho e assim ter autonomia financeira.

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