Belém: a cidade que vive as suas próprias histórias de arrepiar
Entre becos, casarões e praças antigas, o imaginário popular alimenta há décadas narrativas de visagens, aparições e mistérios que se misturam à própria história urbana da capital paraense
Na semana em que o mundo celebra o Halloween, nesta sexta-feira (31), Belém mostra que não precisa importar tradições para viver histórias de arrepiar. A capital paraense carrega há séculos suas próprias narrativas de mistério, as famosas “visagens”, que misturam religião, memória e cultura popular e seguem encantando e assustando gerações de belenenses.
A cidade sempre foi cercada de histórias. Entre becos, casarões e praças antigas, o imaginário popular alimenta há décadas narrativas de visagens, aparições e mistérios que se misturam à própria história urbana da capital paraense. Segundo o historiador e especialista em Ciências da Religião Márcio Neco, essa tradição é parte da identidade cultural da cidade e segue viva, mesmo com o avanço da modernidade.
“O belenense cresce habituado a ouvir histórias de lendas, de assombrações, de visagens que transitam pelo imaginário da população”, explica o professor. Ele lembra que, desde as décadas de 1940 e 1950, era comum que famílias se reunissem à noite, nas portas das casas, para conversar e compartilhar narrativas. “Esses momentos eram o cenário ideal para a criação e transmissão das lendas urbanas, que se perpetuaram oralmente e, com o tempo, passaram para livros, vídeos e até redes sociais”, acrescenta.
Entre as histórias mais conhecidas está a da Moça do Táxi, que segundo o pesquisador teve origem real, uma vez que a mulher existiu e morou em Belém, mas foi transformada pelo imaginário popular em uma narrativa sobrenatural. “Nunca houve um taxista que foi à casa dela cobrar corrida, mas a história continua sendo contada e adaptada até hoje, inclusive em versões que envolvem aplicativos de transporte”, conta Neco.
Outras figuras lendárias que povoam o imaginário da cidade são o Porteiro, que vendia vísceras nas madrugadas e assustava quem o chamasse, a moça que virou estátua por desrespeitar a mãe, e até o Frei Caetano Brandão, cuja estátua, segundo o mito, desceria do pedestal para caminhar à noite pela praça.
O historiador também chama atenção para o fato de que muitas das narrativas classificadas como “lendas” nasceram de crenças indígenas demonizadas durante a colonização. “Matinta Pereira, por exemplo, era uma divindade indígena chamada Matim Taperê, uma protetora da floresta. O mesmo vale para o Curupira e a Mãe d’Água. Não são lendas, são expressões religiosas de povos que viveram e vivem na Amazônia”, destaca.
Em Belém, alguns espaços ganharam fama de “assombrados” por relatos de vigilantes e funcionários que afirmam ter vivido experiências sobrenaturais. Entre eles, o Chapéu do Barata, o Palácio Antônio Lemos e o Palacete Francisco Bolonha. “São locais com registros concretos de ocorrências, de pessoas que passaram mal, procuraram atendimento médico ou simplesmente abandonaram o trabalho após situações inexplicáveis”, relata o pesquisador.
Neco ressalta, no entanto, que o papel do historiador e do antropólogo é separar as camadas de mito, realidade e ficção, evitando que o imaginário se confunda com a história. “É preciso compreender essas narrativas como construções culturais, que ajudam a explicar a cidade, sua religiosidade e seu modo de ver o mundo”, afirma.
O professor também analisa fenômenos contemporâneos, como o Halloween, que chegou a Belém nos anos 1980 e 1990 por meio dos cursos de idiomas e da influência da cultura norte-americana. Embora ainda seja alvo de preconceito por parte de grupos religiosos, ele vê a data como um exemplo de troca cultural. “Infelizmente, há uma demonização por intolerância religiosa, mas também há movimentos de resistência que valorizam o folclore local, como o Cortejo Visagento”, observa.
Para ele, as lendas e visagens de Belém resistem ao tempo e à urbanização. “Elas continuam vivas porque fazem parte da nossa memória coletiva. Hospitais, quartéis, casarões e prédios antigos são repositórios dessas narrativas. Elas saíram da oralidade, foram para os livros e hoje habitam o audiovisual e as redes. Isso é nosso, é parte da alma da cidade”, conclui Márcio Neco.
Medo e memória
As histórias de assombração que se espalham por Belém não se limitam ao campo do imaginário popular estudado por pesquisadores como o professor Márcio Neco. Elas também ganham novas interpretações e registros contemporâneos, como os feitos por Nathan Moura, criador do perfil Belém de Arrepiar, que reúne nas redes sociais relatos e curiosidades sobre o lado mais misterioso da capital paraense.
“Belém possui incontáveis relatos de ‘visagens’. Talvez a mais conhecida seja a lenda da Moça do Táxi, a história de Josephina Conte, cujo espírito apanharia um táxi todo dia 19 de abril, data de seu aniversário”, conta Moura. “Mas há outras famosas, como os fantasmas que aparecem no Palacete Bolonha, incluindo o próprio idealizador, Francisco Bolonha, as assombrações do Palacete Bibi Costa, do Palácio Lauro Sodré, do Palácio Antônio Lemos e outras bem cabulosas, como o fantasma da estudante secundarista do IEP ou o do padre que surgiria no altar-mor da Igreja de Santo Alexandre”, relata.
Segundo ele, a maioria dessas histórias se passa em prédios e casarões históricos, cemitérios, igrejas e praças antigas, lugares onde o tempo parece ter deixado ecos de outras épocas. “Belém é uma cidade antiga. Muitos desses relatos são contados há gerações e alguns deles são mais antigos que a própria cidade, como as histórias de curupira, com registros do século 16 feitos pelo padre José de Anchieta”, explica.
Para Moura, o termo “visagem” é parte essencial dessa herança cultural. “É uma palavra muito nossa, nortista, sinônimo de fantasma e assombração”, diz. Ele acredita que o repertório de histórias de terror faz parte de uma tradição oral que resiste ao tempo. “Existe uma cultura de contar essas histórias em rodas de conversa, à noite, entre amigos e parentes. Isso era passado de geração em geração, especialmente no interior, e já foi bem mais presente no passado”, completa.
Além das lendas antigas, Nathan também comenta a chegada de tradições estrangeiras, como o Halloween, que hoje convive com elementos do folclore brasileiro. “O Halloween é uma comemoração americana que veio da cultura celta, e nós aqui no Brasil copiamos dos americanos. Mas vivemos num mundo interconectado, onde as culturas se misturam. Existe o Dia do Saci, que é algo nosso, da cultura brasileira. Eu acho os dois válidos e interessantes”, afirma.
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