200 anos de história: São José Liberto já foi hospedaria, convento, presídio e polo joalheiro

Complexo atualmente movimenta R$ 4 milhões por ano na economia paraense e guarda a memória do cárcere na cidade e uma das mais violentas rebeliões da história

Emanuele Correa

O Espaço São José Liberto é um complexo criativo que desde 2002 abriga 11 espaços e movimenta por ano R$ 4 milhões na economia paraense. No entanto, a história da edificação é bem mais antiga e chega a 200 anos. Já foi hospedaria, convento, depósito de pólvora, olaria, hospital até finalmente se tornar uma cadeia pública e anos mais tarde o Presídio São José, que em 1989 foi palco de uma rebelião que durou 27 horas, deixou quatro mortos, três feridos e foi o estopim para o seu fechamento nos anos 2000. A história dessa rebelião é recontada no episódio piloto de "Somente a Verdade", websérie documental do Grupo Liberal, já disponível, gratuitamente, em OLiberal.com.

Adriana Coimbra, professora da Universidade do Estado do Pará (Uepa), explica que, inicialmente, o São José não era um espaço de encarceramento. Começou hospedaria aos religiosos que estavam no processo de colonização e catequização da mão de obra indígena. "Esse espaço não foi construído para um lugar de privação de liberdade. Ele já foi várias coisas. Em 1617, os religiosos vieram catequizar. Então foi construído para ser hospício, mas não no sentido que conhecemos e sim de hospedaria do religiosos franciscanos. Posteriormente virou o convento de São José", relembrou.

"Em 1749, quando os religiosos foram expulsos, o espaço não estava acabado. Mas já era um convento. O Estado vai tomar conta em meados do século 18 e aí vai virar um depósito de pólvora, olaria, até um hospital. Então teve várias funções para este espaço, até que em 1843 virou uma cadeia pública e posteriormente o presídio São José", completou a historiadora.

Adriana ressalta que a cadeia pública não era um espaço para onde somente os contraventores da lei eram enviados, mas as pessoas escravizadas também eram levadas pelos senhores de escravos para serem "disciplinados". A primeira prisão que se tem conhecimento foi de um escravizado chamado Inácio, em 1858. "No século 19, não havia essas noções de direitos humanos como temos hoje. Havia a pena de morte, uma cela para aqueles que eram condenados. Estes eram executados de forma pública, no largo de São José, onde é a praça hoje. A pessoa condenada passava os últimos minutos na capela, que na época era um oratório. Pedia clemência, encomendava a própria alma e depois faziam um passeio no entorno da cadeia pública, a população vinha e essa pessoa era executada em praça pública, geralmente enforcada ou decapitada", observou a pesquisadora.

Já em 1988, quando houve a rebelião no São José, a urbanização de Belém já estava crescendo. Bairros como o Jurunas e a Cidade Velha estavam com um contingente populacional maior e o presídio superlotado. A capacidade máxima eram 150 pessoas, no entanto, 300 presos lotavam as celas.  "A cadeia começa a ser cercada pelo núcleo de urbanização. Insustentável. O Ninja [um dos líderes da rebelião, posteriormente morto] tinha uma pena muito longa. Foi condenado por latrocínio e assalto a banco. A decisão dele era sair de qualquer forma. A rebelião rendeu quatro mortos, três feridos e nenhum dos reféns foi morto. Em 2000, a cadeia é desativada e em 2002 ela é reaberta como esse espaço material e imaterial da memória do Pará, que é o São José Liberto", pontua Adriana.

Dois espaços que guardam a memória a memória do espaço e ressignificam essa história dolorosa, destaca a pesquisadora, são a "Cela Cinzeiro" e o "Jardim da Liberdade". "Jardim da Liberdade e onde é hoje o coliseu cultural e aqueles espaços, eram locais onde os presos tomavam sol e jogavam futebol. Importante falar dessa memória traumática. Esse patrimônio edificado guarda uma memória. A cela cinzeiro era uma cela que tinha só um buraco no chão para necessidades fisiológicas. Um espaço claustrofóbico. A gota d'água para o fechamento do presídio são José foi a rebelião de 1998. Ela durou 27h, o Ninja acabou morto após um desentendimento. Hoje essa cela conta a memória também de Belém", explica.

O Espaço São José Liberto: de criatividade e memória 

Rosa Neves é diretora executiva do Complexo São José Liberto (SJL) há 14 anos e relembra a reabertura em 2002, que transformou os espaços do presídio em: Capela São José, Museu de Gemas do Estado do Pará, Jardim da Liberdade, Memorial da Cela “Cinzeiro”, Lojas de Joias, Gemas e Ilhas de Ourivesarias e Gemas, Anfiteatro Coliseu das Artes, Espaço Moda, Casa do Artesão e Espaço Gourmet. A diretora destaca o espaço como um potencial criativo e econômico, mas também que guarda uma memória e cria novas que não são de dor.

"Faremos 20 anos de funcionamento ano que vem. Foi planejado como espaço criativo, da economia da cultura. Hoje trabalhamos o conceito de economia criativa, com gemas, joias e artesanatos. O SJL é compreendido também - além de espaço de desenvolvimento econômico local, que gera emprego e renda - como um um complexo, espaço turístico", destaca Rosa, mostrando como o presente se distancia do passado de violência.

Moradores conviveram com o presídio e passaram a utilizar o espaço uma vez por mês para o terço dos homens e missas, mas também para o lazer, assim como o prédio segue sendo inspiração para os próprios artesões e designers. "Você não vê nada pichado, deteriorado, a comunidade cuida do espaço. Trabalhamos para que fosse mantida as grades, piso que foi recuperado. O prédio é uma inspiração para a coleção de joias. É um espaço que gera muita informação", conta Rosa.

Diego Araújo mora há 38 anos próximo ao SJL e conta que tem uma visão ampla do espaço, pois presenciou os momentos dos encarcerados pedindo cigarros, dinheiros e outros itens pela janela. No dia da rebelião, acompanhou tudo de perto, de cima de uma árvore da casa de um vizinho. "Eu vi umas três rebeliões. A última foi das piores, executaram ele [Ninja]. Subimos em um jambeiro muito grande. A gente via eles jogando bola com a cabeça de um, tocando fogo nos lençóis, eram muitos jovens", relembrou o morador.

"Vendo o hoje, foi muito bem elaborado esse espaço de visitação de turistas. Lembro que quando desativou e estava em obra eu entrei lá, por curiosidade. Era um ambiente pesado, sombrio, realmente para pagar pena. Depois que virou o complexo, lá tem um cristal no meio - para mudar as energias -, ficou bem legal.", completou Diego.

Juarez Reis da Costa, 64 anos, mora na rua Oswaldo de Caldas Brito, esquina com o presídio há 50 anos. A infância foi marcada pelas partidas de futebol dentro do presídio, pois os moradores tinham livre acesso. "À noite era comum a gente ouvir muitos gritos, espancamento. Mas hoje, melhorou muito. Por ser um presídio, era perigoso. Para o lazer ficou melhor", finalizou.

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