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Ver-o-Peso 396 anos: a rotina solar da maior feira da América Latina

Na segunda reportagem da série sobre o aniversário do Ver-o-Peso, O Liberal conta o lado solar do 'Veropa' através de seus personagens

Igor Wilson

O serpenteado dos ônibus na avenida Portugal sinaliza o começo do dia no Ver-o-Peso. Todo belenense é íntimo de alguma linha que dá a volta no complexo. ‘Ver-o-Peso’ talvez seja a palavra que mais aparece nos letreiros dos coletivos. Paraense que é paraense cresce familiarizado com a pronúncia, mesmo antes de ir ao Ver-o-Peso. Turistas de vários estados, paraenses que fazem as compras da semana, pessoas em busca de diversão, do peixe frito com açaí, da pupunha, do banho de cheiro, da bugiganga importada da China, do pato ou da galinha da Angola. Mesmo com o clima nublado das águas de março, o dia no Ver-o-Peso sempre é quente e colorido.

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Primeira reportagem em homenagem ao aniversário do Ver-o-Peso mostra o lado lunar do local, que completa 396 anos amanhã.

Assim como os cheiros, o som está por todo lugar. “É isso que vocês querem? Então tomem!”, grita Julio Sena, segurando uma caixa de incenso. O vendedor, que diz ser conhecido como ‘A lenda das lendas’, está no Ver-o-Peso há 30 anos. “O que eu diria pra alguém fazendo 396 anos? Obrigado, você é tudo pra mim’, diz. A garganta de Julio é forte, mas não o suficiente para competir com a caixa de som do jovem Francinei Sena, vendedor de pen drives “com milhares de gigas de marcantes para fazer você se apaixonar”. As vezes parado, outras circulando com a moto-som, consegue vender de 20 a 30 dispositivos por dia, o que garante o sustento da família. “O Ver-o-Peso é meu palco principal, parabéns pra ele”, diz.

Em frente aos principais monumentos arquitetônicos, como o Solar da Beira e os mercados do Ferro e da Carne, os artistas, principalmente músicos, vão ‘mangueando’ aqui e acolá. Oferecer cultura é uma missão ingrata. As vezes vistos como vagabundos, os artistas do ‘veropa’ acordam cedo, pegam ônibus sucateados e lotados por longos períodos de tempo. Tudo para bater o ponto e trabalhar. Oferecem, em troca de trocados, o sangue paraense, para todos que ali passam ver e ouvir. De um lado da avenida, uma banda toca marchinhas antigas, até arriscam um ‘Parabéns’ quando sabem do aniversário do complexo. Do outro, os subversivos do Carimbó Selvagem tocam os curimbós e maracás bem afinados. “Quem trabalha na rua é pressão, quem trabalha na rua é pressão, quem trabalha na rua é prassão”, diz um dos versos da canção. A hora do almoço se aproxima. A massa de gente vai procurando forrar a barriga.

Ver-o-Peso Solar

 

Das proximidades do Solar da Beira, revitalizado em 2020 e que hoje funciona como ponto de trabalho para vendedores e artistas cadastrados, até as tendas de comidas típicas, muita coisa acontece no Ver-o-Peso. “Até o imperador daquele país lá, o Japão, ficou impressionado quando veio aqui. Ele se apaixonou por uma galinha minha, só não comprou porque não podia levar na viagem”, conta um homem vestido de branco. Entre um gole de café e o cacarejar dos aves, Edvaldo Moreira vai contando seu dia a dia vendendo os animais vivos ali. O homem de 48 anos é da terceira geração da família no negócio, que funciona no mesmo lugar. “O problema dele é que ele conta muita fofoca e trabalha pouco moço”, brinca um feirante da barraca vizinha, especializada em temperos...para carne de aves. Os dois se conhecem desde mais ou menos os 13 anos, quando ajudavam os respectivos pais. Hoje, são dois dos 1.193 permissionários, distribuídos na Feira do Açaí, Mercado de Carne Francisco Bolonha, Mercado de Ferro (Peixe), Pedra do Peixe e Feira do Ver-o-Peso.

O Ver-o-Peso carrega, já há algum tempo, o título de maior feira a céu aberto da América Latina. O nome é imponente, nos faz pensar em algo que atrai multidões diariamente. Para a velha guarda do local, não é bem assim. O movimento já foi maior e os próprios números mostram isso. O número de frequentadores do Ver-o-Peso diminuiu drasticamente. Para alguns, efeito da pandemia, para outros, descaso na promoção do tesouro. Atualmente, 15 a 20 mil pessoas passam pelo complexo diariamente. Antes da pandemia, eram 50 mil, diz a prefeitura de Belém. “Eu já tive muito a comemorar aqui, foram muitas vitórias, como quando arrumaram as barracas. Os navios com turistas todos os dias atravam aí, um do lado do outro, era bom demais. Hoje não, a violência é muita, o movimento diminuiu. Só em um ano fomos roubados três vezes”, diz a feirante Leila Bandeira, com autoridade de quem frequenta o local desde criança.

Ver-o-Peso Solar 2

 

Leila é filha de Dona Coló, um dos símbolos da ervaria do Ver-o-Peso. Sua mãe começou na década de 1970, vendendo plantas para as erveiras. Sempre levava a filha nas missões. Um dia conseguiu direito a uma banca. “Promovida” à erveira com banca, os caminhos se abriram e Coló se tornou uma personagem do dia do Ver-o-Peso. Precisou se aposentar em 2019, após cinco AVCs. Para Leila, que fala com a voz embargada pelo choro ao lembrar da mãe, foi o prenúncio do fim de uma era na feira. A filha de Coló deixou a banca de ervas da mãe e passou a trabalhar exclusivamente para as entidades da Umbanda, vendendo artigos da religião numa loja atrás do Mercado de Ferro. “Estou aqui por caridade, porque quem manda são as entidades, mas a violência está demais, precisamos reviver o Ver-o-Peso, pra que ele viva mais 396 anos”, diz.

O meio dia se aproxima. A chuva prestes a cair concede um tempo para quem quiser se esconder dela. As tendas vão ficando abarrotadas. A fumaça da fritura, gente falando e rindo alto, uma boa característica do paraense. Se esgueirando numa proteção, alguns jovens aguardam os ônibus. Não para voltar para casa, mas para vender ou pedir. Existe uma hierarquia a ser respeitada em todos os cantos, inclusive ali. Cada um aguarda sua vez. “Amados, minha filha está no hospital”, “O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é pouco”, “Prefiro pedir do que mexer nas coisas dos outros”. Fica difícil separar a verdade da mentira. Mas enquanto os ônibus passarem, ainda é dia no Ver-o-Peso. Meio dia e chuva. 396 anos.

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