Ver-o-Peso 396 anos: conheça a rotina noturna da maior feira da América Latina; vídeo

Primeira reportagem em homenagem ao aniversário do Ver-o-Peso mostra o lado lunar do local, que completa 396 anos amanhã.

Igor Wilson

“396 anos? Égua, quanto tempo heim!?”, diz Ana Hilde ao saber a idade do Mercado do Ver-o-Peso. Ela olha para a Baía do Guajará. A maré está cheia e a lua minguante se esconde no clima nublado. Parece que vai chover, diria dono Onete. Ela vê as luzes coloridas dos barcos navegando pela noite, carregados de gente e mercadorias, partindo e chegando em direção à Pedra do Peixe e à Feira do Açaí. Segura na cadeira de rodas da filha Vitória Oliveira e diz o que sente pelo ‘veropa’. “Isso aqui é ouro! Olha só ao seu redor, toda essa riqueza! Parabéns, Ver-o-Peso”, diz, disfarçando a emoção.

Mãe e filha moram em Belém há dois anos. Vieram de Tomé-Açu para passar um tempo e ficaram de vez, morando no bairro da Pedreira. Vitória tem paralisia cerebral. Seu programa favorito é passear pelo Ver-o-Peso no final da tarde. A mãe anda com a filha por mais de uma hora. O lugar é parte da terapia de Vitória. A jovem gosta de ouvir música, ver o ‘furdúncio’ das festas daquele horário. Enquanto um lado do mercado vai se organizando para o próximo dia, o dos bares abre para mais uma noite de sexta-feira. Uma escada com nove degraus é a fronteira entre os espaços. Quando chega, Vitória agita os braços. Quer abraçar o amigo ‘Djavan’, outro personagem noturno do 'Veropa’, conhecido por transitar com sua bike-som, animando clientes com música e sacadas sobre futebol e política. “Essa aqui só escuta sem chorar aquele que nunca foi corno ou que torce pro Leão”, brinca.

Mais adiante, sob as tendas encardidas, pessoas se espremem numa festa de tecnomelody. O álcool, a fumaça do tabaco, o cheiro abafado dos corpos suados que dançam desafiando o espaço. Luxúria e frenesí na beira do rio. “O Ver-o-Peso serve pra gente relaxar e refletir sobre o dia a dia, vendo as dádivas que Deus nos deu e bebendo uma cerveja”, diz Mari Farias, moradora do Tapanã e habitual frequentadora. O marido dela surge no meio da conversa. Quando fica sabendo do aniversário, abraça Mari e saúda o mercado que nasceu em 1627. “Viva o Veropa, meu Deus, lugar maravilhoso, parabéns!”.

Ver-o-Peso Lunar

 

Lado obscuro do Ver-o-Peso

A noite do Ver-o-Peso é frequentada por várias criaturas. Carregadores, operários, pescadores, vendedores de todo tipo, executivos, mendigos, prostitutas e malandros. Anjos, orixás, Zé Pilintra e Tranca-rua, caboclos da floresta, São José e Virgem de Nazaré, Jesus Cristo e o pastor que grita no rádio de alguma banca, cujo dono cochila esticado num papelão, aguardando o início do movimento da madrugada. Todos transitam ali. Todos são invocados para dar proteção, talvez desde antes de 1627. Beira do rio é lugar de imigração, chegadas e despedidas.

“Tira uma foto minha com a minha mulher aqui”, diz um jovem de tronco nu, pegando no traseiro de outro rapaz, que sorri. Os dois somem na escuridão. A madrugada vai chegando. A maniva cozinhando espalha o aroma. Feirantes se preparam para a compra dos produtos para o dia. No labirinto de bancas, mesas de carteado improvisadas em caixotes. O dinheiro casado na mesa, o ‘melé’ virado para cima, o sinal da cruz pedindo sorte. “Não vai tirar foto, minha mulher é ciumenta, se souber que tô jogando...”, diz um dos jogadores, incomodado. Ninguém quer aparecer. É o lado B do Ver-o-Peso.

Um pouco mais a frente, passando o Mercado do Ferro, a Pedra do Peixe parece um quadro vivo. Dezenas de barcos atracados, centenas de trabalhadores e comerciantes transitando freneticamente formam o mosaico. Os peixes são descarregados e organizados em basquetas pelo chão. As balanças estão preparadas. Tudo parece caótico, mas está tudo em seu devido lugar. A chuva fina começa a cair, mas não impede o fervilhar de gente às 4h da madrugada.

Os barcos chegam ao cais do Ver-o-Peso após dias no alto-mar. Os pescadores descarregam o que mais tarde estará na mesa de milhares. São de 70 a 80 toneladas que chegam à Pedra do Peixe todos os dias, como aponta a Secretaria Municipal de Economia de Belém (Secon). Dourada, filhote, gurijuba, piaba, bagre são pesados, comprados e colocados em caminhões estacionados próximo à Praça do Relógio. Para os pescadores, como Isaías Souza, é o final de um longo período de trabalho. Para os outros, o início. Um dos muitos ciclos do complexo.

ver-o-peso lunar 2

 

“Quando vamos, não sabemos quando volta. Nosso horário quem faz é a maré e só quando o barco enche de peixe que voltamos. Trazemos umas quatro toneladas por viagem", diz um pescador de voz fanha, morador de Cachoeira do Arari e que costuma pescar em Soure, no Marajó, e no canal do Curuá, no Amapá. “20 anos aqui, o Ver-o-Peso é meu parceiro, faça chuva ou faça sol, as vendas estando boas ou não, ele sempre me ajuda, então quero agradecer”, diz. E ele se soma às pessoas que veem e tratam o "Veropa" como um ser vivo.

Primeiros raios de sol

O dia vai clareando. Ao contornar a Pedra do Peixe, muita coisa aparece, nem sempre tão belas como nas músicas. No centro do cais, trabalhadores filetam peixes em tábuas. Primeiro cortam as cabeças. Os restos vão para o chão. As carcaças são disputadas por garças e urubus aglomerados. “Esse aí é potoqueiro, já tá querendo aparecer na reportagem”, grita uma das trabalhadoras ao ver um colega falar que arrecada peixes para doar aos pobres. “É tudo mentira, não tem nem vergonha, sempre diz isso, sai daí”, diz a mulher, provocando risos dos demais.

Ali perto, o tráfego de carroceiros aumenta. Com sacas de açaí empilhadas nos veículos de madeira, os trabalhadores entram e saem da Feira do Açaí. O vendedor de mingau se desvia para vender. “Aqui é como uma Serra Pelada: o dinheiro jorra pra todo lado, tem pra todo mundo”, diz. Banquinhas vendem o café com pão ou tapioca, mas também a dose de cachaça. Entre o antigo Necrotério - que fica no mesmo local onde os portugueses criaram a ‘Casa de Haver o Peso’ para taxar as transações que ali se faziam - e o Forte do Castelo, os barcos com açaí atracados. A dinâmica é a mesma do peixe. É dali que sai o açaí que abastece a capital paraense e a região metropolitana. Em torno de 100 toneladas in natura são comercializadas por dia na Feira do Açaí. O valor diário chega a dobrar no período da safra. Grande parte vem da região ribeirinha e do arquipélago do Marajó.

“E aí, 'vamo' levar logo?”, indaga um vendedor ao perceber um cliente retornar. “Mas quando, isso já tá tudo revirado já”, diz o cliente. Se aproxima das cestas com o fruto. Pega uma e começa a roer até sua boca ficar negra. “Vou levar”, diz. Chama um carroceiro. Até sua caminhonete, são R$ 10 por cada viagem.

O movimento da maré é emulado pelo vai e vem de mercadorias, com apenas uma diferença: a economia não tem maré baixa. Como retratado na poesia de muitos artistas, a beira de água atrai lamentos e saudade. O nascer do dia traz mais pressa. “Sai da frente”, diz um carroceiro. Os canhões do Forte parecem apontados para a massa de trabalhadores. A ladeira que leva à fortificação exala cheiro de urina e fezes. Não é possível pesar o lamento deixado nos rios há séculos. As águas parecem atrair isso. A maré vai secando, o clima é nublado, suficiente para fazer as luzes da madrugada desligarem. Quando o sol nasce, um outro momento e outra persona do complexo cartão-postal de Belém é revelada. O dia é longo.

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