Projeto 'Rios de Encontro' : Arte-educação com sotaque britânico nas periferias de Marabá

A 'Cidade Poema', um dos carinhosos apelidos de Marabá, é também conhecida por ser destino de muitas pessoas vindas de fora

Tay Marquioro
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A 'Cidade Poema', um dos carinhosos apelidos de Marabá, é também conhecida por ser destino de muitas pessoas vindas de fora. Quem vive por aqui, já entendeu o quanto a cultura e os hábitos da cidade são influenciados por gente de Belém, mas também maranhenses, goianos, tocantinenses, mineiros e pessoas de outras partes do mundo. Por isso, falar de Marabá é contar uma história que atravessa a vida de quem não necessariamente é natural da cidade, mas que escolheu viver aqui e contribui dia após dia com o desenvolvimento dessa população. 

Pensando nessas transformações, começamos a contar um pouco da trajetória do britânico Dan Baron. Nascido em uma família originária do País de Gales, ele é originalmente formado em literatura, pela renomada Universidade de Oxford. “Eu costumo brincar com isso, chamando de ‘deformação’, porque essa é uma instituição extremamente excludente. E observar isso me tocou profundamente sobre a necessidade de questionar toda aquela presença de um poder imperial que existia ali”, inicia Dan, que coordena o projeto Rios de Encontro, no bairro mais antigo de Marabá, o periférico Francisco Coelho. Falando em português com ainda algum resquício de inglês britânico, o educador comunitário, como ele mesmo se define, conta que chegou ao Brasil no início de 1998 para ficar uma temporada de cinco meses e já soma mais de 20 anos por aqui. Sobre o início da sua relação com a Amazônia e o Pará, Dan acredita que um divisor de águas foi talvez o capítulo mais triste da nossa história recente. “Eu fui convidado para colaborar com a Universidade Estadual de Santa Catarina, eu era professor de Artes Cênicas e Teatro Comunitário. E já no avião, indo à Florianópolis, eu li uma matéria sobre os Sem Terra na revista Time, sem entender realmente o que estava acontecendo, mas reconheci ali um movimento comprometido com questões agroecológicas”, relembra. “Conhecer o Movimento Sem Terra, pela ousadia, pela coragem, pelo compromisso com Paulo Freire, mas também tendo contato com o massacre de Eldorado dos Carajás, isso me tocou de uma forma muito profunda”.

image A 'Cidade Poema', um dos carinhosos apelidos de Marabá, é também conhecida por ser destino de muitas pessoas vindas de fora como o britânico Dan Baron (Tay Marquioro/ O Liberal)

A partir disto, inevitavelmente, houve a aproximação com o debate sobre a democratização de terra ainda e, logo, ainda em solo catarinense, Dan recebeu do Movimento Sem Terra um convite para ajudar a romper com o silêncio que cercava as circunstâncias do massacre. “Eles buscavam um monumento que não deixasse aquele episódio cair no esquecimento e o convite era pra que eu idealizasse”, explica. Com uma importante missão nas mãos, ao contrário do que os próprios sobreviventes esperavam, Dan não desembarcou em Eldorado dos Carajás com uma ideia pronta, mas com a técnica de se criar algo a partir das vivências daquelas pessoas. “Trabalhamos com os sobreviventes do massacre, a partir de uma pedagogia de escuta, dando voz a histórias íntimas de gente que presenciou a Amazônia sendo violentada através de seus corpos”, avalia. Utilizando esta metodologia, Dan, sua companheira Manoela Souza e 800 sobreviventes do massacre, enfim, ergueram enormes troncos de 19 castanheiras queimadas e cheias marcas, dispostas no formato do mapa do Brasil, em memória dos trabalhadores rurais que perderam suas vidas. Foram seis semanas de um intenso trabalho coletivo de concepção e o marco ficou conhecido como As Castanheiras de Eldorado dos Carajás, inaugurado no dia 17 de Abril, 1999, às margens da rodovia BR-155, na área conhecida como “Curva do S”, local exato onde houve o confronto entre policiais militares e trabalhadores rurais. 

image Marco de Eldorado de Carajás, idealizado por Dan Baron em conjunto com os sobreviventes do massacre (Dan Baron/ Divulgação/ Arquivo Pessoal)

Debate sobre a preservação da vida

Nas andanças que já teve pelo país, a trajetória de Dan Baron é permeada por uma relação muito intrínseca com a Amazônia, inclusive a cultura de povos tradicionais e originários. Já em Marabá, o trabalho realizado desde 2009 com as mais de 380 famílias envolvidas nas atividades de arte-educação do projeto Rios de Encontro é o reflexo dessas influências. É por meio dele que Dan busca travar um debate corajoso sobre a preservação da vida não apenas humana.

Questionado sobre o que mudou em anos de dedicação a projetos de educação socioambiental, o educador é enfático. “A Amazônia mudou a minha vida. A visão que eu tinha sobre a região era a partir da justiça social, mas antropocêntrica. Hoje, a partir de minha vida na comunidade ribeirinha, eu tenho uma visão ecocêntrica, que vai além de questões relacionadas à preservação e de respeitar a finitude dos recursos naturais. É de respeitar as florestas e rios na Natureza como fontes da vida toda, e reconhecer o ser humano como parte dela. É fundamental que esta geração tenha consciência ecológica disto também. Mas eu cheguei aqui bem mais jovem, é difícil lembrar o olhar daquela pessoa”, avalia Dan.

image Dan Baron coordena o projeto "Rios de Encontro", no bairro mais antigo de Marabá (Dan Baron/ Arquivo Pessoal)

Nos diversos microprojetos coordenados paralelamente pelos jovens do Rios de Encontro, como dança, percussão e produção audiovisual, o projeto já recebeu o reconhecimento de diversas premiações regionais e nacionais. A Cia. de Dança AfroMundi já foi convidada até para apresentar fora do país, em performances onde a questão ambiental é sempre protagonista, mas sob a perspectiva de quem vive o cotidiano amazônico. “Sou uma pessoa vinda de uma cultura Celta que sofreu e ainda sofre a colonização e o autoritarismo cultural britânicos. Por isso, sou disposto a ouvir, disposto a reaprender sobre ancestralidade, com objetivo de encontrar formas de resgatar raízes, para usufruir das novas tecnologias, nossas antenas, e não sermos recolonizados por elas. Para valorizar tanto a memória da terra quanto o imaginário e o sonho dos povos que vivem aqui”, diz o galês. “Eu valorizo a voz íntima, lúcida, de como a pessoas dialogam com elas mesmas. É com esse respeito, de não invadir a identidade dos outros, que nós podemos construir projetos comunitários não que fazem a cabeça, mas que vão inspirando, respeitando e cuidando dos envolvidos”. 

image A Cidade Poema, um dos carinhosos apelidos de Marabá, é também conhecida por ser destino de muitas pessoas vindas de fora (Dan Baron/ Divulgação/ Arquivo Pessoal)

A convivência com as comunidades ribeirinhas afrodescendentes do bairro Francisco Coelho, conhecido como Cabelo Seco, revelou um tipo de sabedoria que nenhuma escola ou universidade é capaz de compreender ou ensinar. “Conheci aqui, pessoas definidas como analfabetas, que não conseguiam ler ou fazer contas de matemática básica, mas sabiam ler os rios, os ventos, entender o que a floresta fala, e isto é o conhecimento mais precioso”, reconhece, afirmando que esta sabedoria só se adquire como parte da natureza. Dan entende a preservação da Amazônia como a questão mais urgente de hoje, principalmente, por estar em um patamar de devastação que muitos ainda não enxergam a gravidade. “Eu ouço muitos dizerem por aí que o colapso climático é inevitável, como se fosse algo impossível mudar. Eu discordo, acredito que projetos como Rios de Encontro, no Brasil e no mundo, oferecem caminhos e precisamos mudar urgentemente nosso comportamento e nosso paradigma de educação, ou não teremos mais onde viver”, alerta o educador. 

 

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