Pará investe em inteligência artificial com avanços em regulamentação, pesquisa e inovação
Curso de Bacharelado e projetos da UFPA com foco em Inteligência Artificial, aumentam os estudos sobre tecnologia na Amazônia; governo estadual já estuda regulamentação
A Inteligência Artificial (IA) se consolidou como um dos pilares da transformação tecnológica global, e a Amazônia quer fazer parte desse movimento. No Pará, esse avanço ocorre em diferentes frentes: enquanto o Governo do Estado estuda a regulamentação do uso da IA, por meio do Decreto nº 4.690, que instituiu um Grupo de Trabalho para propor diretrizes preliminares de adoção responsável da tecnologia, a Universidade Federal do Pará (UFPA) também dá um passo importante.
Para formular uma proposta de legislação consistente, o Grupo de Trabalho do governo estadual vem analisando o uso da inteligência artificial em diferentes áreas de interesse público, como segurança, saúde, meio ambiente e educação, explica a procuradora Lilian Haber, que coordena a pesquisa.
“Nós nos deparamos com uma riqueza formidável de dados para trabalhar. Estamos pensando na inteligência artificial em diversas áreas e, para que possamos ver como aplicá-la, precisamos ter os dados dessas áreas, desses setores, para compreender melhor o estado atual da IA do nosso estado, para fazer propostas de cenário a curto, a médio e a longo prazo”, explicou.
Segundo ela, para viabilizar a regulamentação no Pará, é preciso concluir a etapa de coleta de informações, prevista para ser finalizada em até 60 dias adicionais, prazo concedido pelo governo estadual.
“Estamos agora consultando cada um dos órgãos do Estado para saber se possuem laboratório de inovação, se já usam inteligência artificial, se possuem profissionais que já estão capacitados ou precisam ser capacitados. E, a partir daí, a gente está em construção desse marco regulatório. Esperamos que, nos próximos dois meses, a gente já consiga ter levado ao governador essa proposta, passando as ideias do grupo e ouvindo o feedback dele, porque a gente realmente quer que essa legislação espelhe as necessidades locais da gente, que atenda o Pará, a bioeconomia e a sustentabilidade do nosso povo”, completou.
UFPA implementa curso de Bacharelado
Com o objetivo de ampliar a pesquisa e a formação de profissionais na área, a UFPA anunciou a criação do curso de bacharelado em Inteligência Artificial, um dos primeiros da região Norte, que além de inovar em tecnologia, vai discutir conceitos e a ética da IA no mundo atual.
A primeira turma, com 30 vagas, será ofertada no Campus Belém já no processo seletivo de 2026. As aulas ocorrerão no prédio do Mirante do Rio e contarão com o suporte de um laboratório exclusivo para o curso. Os professores da Faculdade de Computação do Instituto de Ciências Exatas e Naturais (ICEN) serão os responsáveis por ministrar as aulas. Segundo o reitor Gilmar Pereira, a criação do bacharelado é uma iniciativa estratégica para alinhar a universidade ao avanço tecnológico que vem transformando o Brasil e o mundo.
“Nós viemos discutindo ao longo desses anos o fortalecimento de uma política de inovação para a universidade. Temos diversos cursos nas áreas de computação e tecnologia, em diversos campi, com um arcabouço de informações muito boas. Quando se fala sobre inteligência artificial, é muito mais do que o Chat GPT e outros, eles são apenas a materialização de um processo. É o momento de discutirmos as questões conceituais, éticas e filosóficas que envolvem essas transformações tecnológicas. Então, esse curso tem um propósito de fazer uma leitura dessa realidade”, contou.
Ainda segundo o reitor, o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) foi elaborado por docentes especialistas em Inteligência Artificial, com base em referências nacionais e internacionais, como o curso da Universidade Federal de Goiás (UFG).
“Temos uma experiência em iniciação em Manaus e estamos juntos trabalhando nessa perspectiva de ter essa reflexão. Fomos ‘beber’ na fonte dos colegas da Universidade Federal de Goiás, que possuem uma experiência profunda com essa questão da inteligência artificial. O bacharelado em IA deles é mais concorrido do que o curso de medicina”, contou.
Além da graduação recém-criada e das pós-graduações já existentes na área de Inteligência Artificial, o plano do reitor é ampliar ainda mais a atuação da UFPA com a oferta de cursos técnicos voltados à comunidade, seguindo o exemplo de outras universidades do país que já investem nesse modelo de formação mais acessível e voltado à prática profissional.
“Nossos colegas do Rio Grande do Norte também têm uma experiência muito boa e combinam uma coisa que eu quero no futuro fazer aqui, que são, além da graduação, ter cursos técnicos nessa área. Lá na UFRN, eles têm curso técnico em inteligência artificial, curso técnico de introdução à computação, entre outros. Eles criaram uma estrutura para isso. É o que queremos aqui”, ressaltou.
Amazônia tecnológica é o foco
A Amazônia é o principal foco e está presente em estudos de quase todos os cursos da UFPA e, segundo o reitor Gilmar Pereira, com o curso de Inteligência Artificial, não vai ser diferente.
“A nossa expectativa é que esse curso seja um instrumento também para fazer uma leitura da Amazônia, para ter mais facilidade de entender como é que a gente lida com a floresta, com as populações tradicionais, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, enfim. Então, é a nossa expectativa, que seja um curso que tem uma perspectiva universal, como todo curso superior, mas que, ao mesmo tempo, tem o propósito de compreender as questões específicas da Amazônia”, declarou.
Além disso, o serviço para a comunidade será obrigatório, com exigência de ações extensionistas como o Letramento em Inteligência Artificial, voltado à oferta de cursos para a população em geral; os Hackathons em IA, voltados à criação de soluções inovadoras por meio de maratonas de programação; e a Fábrica de Software de IA, um espaço no qual estudantes desenvolverão projetos práticos em parceria com empresas, instituições públicas e organizações sociais. De acordo com o reitor, o trabalho de extensão é importante para a inclusão da população às novas tecnologias, principalmente os mais velhos.
“Temos observado que pessoas da minha idade são pessoas em transição quando se trata das tecnologias. Vivemos em um mundo em transição com essa dinâmica com relação às tecnologias atuais. A gente quer que a comunidade, os nossos bairros, sobretudo os mais pobres, tenham acesso a essas tecnologias e utilizem essas tecnologias da melhor maneira possível. Então, para isso, tem que estar acoplada ao curso uma política forte de extensão. Extensão para ir lá no bairro, para pensar como é que as populações mais velhas lidam com as tecnologias, ajudá-las a compreender isso. Na verdade, é uma política de inclusão”, explicou.
Por fim, o reitor aposta que o curso deve ser um dos mais concorridos no vestibular do próximo ano. “Eu acho que esse curso é um curso que vai refinar mais a leitura de realidade dentro da própria universidade e em todo o estado. Tenho uma impressão de que vai ser um curso muito concorrido, porque é uma área, no meu modo de ver, estratégica, e sobretudo para a juventude, que já vem para cá com uma bagagem importante com relação à técnica. Mas, em um curso de bacharelado como esse, o nosso desafio é fazer com que eles operem, mas também tenham, sobretudo, a capacidade de refletir sobre isso”, finalizou.
Projetos da universidade já ampliam estudos sobre IA
Combinando computação de alto desempenho, inteligência artificial e vocação social, o Pará já se consolida como um dos centros mais inovadores do Brasil no uso responsável da tecnologia. No epicentro desse movimento já estava a UFPA, por meio do Centro de Computação de Alto Desempenho e Inteligência Artificial (CCAD IA), e o projeto Smart City em Canaã dos Carajás, cidade que se tornou modelo nacional em soluções inteligentes para os desafios urbanos da Amazônia.
O professor Renato Francês, diretor técnico da Fundação Guamá e titular da Faculdade de Engenharia da Computação e Telecomunicações da UFPA, explica que o CCAD nasceu com foco na computação de alto desempenho, mas, diante do protagonismo crescente da inteligência artificial em diversas áreas do conhecimento, passou a integrar ambas as frentes. “Hoje somos mais de 100 pesquisadores de áreas como biologia, física quântica, ciências sociais, engenharia e meteorologia. O que nos une é o uso da IA aplicada a problemas reais”, destaca.
Segundo Francês, a IA se tornou uma tecnologia transversal: está presente da saúde à segurança pública, da educação ao meio ambiente, impactando diretamente o bem-estar da população. “O projeto IARA (Inteligência Artificial Recriando Ambientes) é exemplo disso. Ele envolve 42 universidades brasileiras e 22 internacionais, além de empresas como Intel e TIM. Canaã dos Carajás foi escolhida como cidade-piloto desse modelo de cidade inteligente, que será replicado em outras 10 cidades do país”, afirma.
A Doutora em Engenharia Elétrica pela UFPA, Evelin Cardoso é uma das coordenadoras do projeto Smart City Canaã dos Carajás, desenvolvido desde 2019 em parceria com a prefeitura do município. O projeto utiliza inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT) para criar soluções em áreas críticas como saúde, educação e meio ambiente.
“Temos, por exemplo, um carro inteligente que circula pela cidade medindo qualidade do ar, um sistema de reconhecimento facial e emocional que apoia o diagnóstico precoce de autismo, e uma IA que reconhece objetos jogados irregularmente nas vias públicas, como entulho e restos de poda”, explica Evelin.
Na saúde, o foco é ainda mais sensível: o uso de visão computacional no rastreamento de marcadores para o diagnóstico precoce do câncer do colo do útero — uma das doenças com maior incidência na região Norte. “A IA pode identificar padrões celulares em lâminas de exame e transmitir a análise para especialistas em qualquer lugar do país, mesmo onde não há conectividade. Isso é fundamental em áreas remotas da Amazônia”, completa Francês.
Inovação com propósito e escala nacional
Além de Canaã, a rede IARA pretende implantar tecnologias similares em outras 10 cidades brasileiras, cobrindo todas as regiões do país. A escolha da cidade paraense como ponto de partida não foi por acaso: trata-se de um território desafiador, com carências típicas da Amazônia que demandam soluções tecnológicas criativas e personalizadas.
“Na Amazônia, conectividade é um luxo. Em locais como Afuá, não podemos contar com internet. A IA precisa ser embarcada em dispositivos autônomos. Por isso, soluções prontas, de prateleira, não funcionam aqui. Nossas soluções são, por necessidade, mais sofisticadas e adaptadas à realidade local”, explica Francês.
Essa abordagem inovadora resultou na aprovação do único INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) em IA da Amazônia Legal, coordenado pela UFPA. Chamado de IA Amazônia, o projeto reúne instituições nacionais e internacionais para atacar os problemas específicos da região com IA aplicada.
Infraestrutura, ética e regulação
Para dar suporte a esse ecossistema, a UFPA conta com a melhor infraestrutura de computação de alto desempenho da região Norte, financiada pela FINEP. São máquinas com GPUs de última geração, capazes de processar enormes volumes de dados, como vídeos, imagens e áudios em escala massiva — condição essencial para aplicações como visão computacional, IA generativa e reconhecimento facial.
Mas toda essa capacidade traz também riscos. Francês lembra que o uso da IA ainda não está devidamente regulamentado no Brasil, o que pode levar a abusos, especialmente por parte das big techs. “Hoje, somos constantemente monitorados sem saber, em redes sociais, plataformas de vídeo e aplicativos. A regulamentação é urgente”, alerta.
O professor participa de grupos de trabalho tanto no Congresso Nacional quanto no governo do Estado do Pará, que discutem marcos legais e estratégias públicas para o uso ético da IA. “Estamos construindo uma política pública estadual, alinhada com as discussões federais, para evitar conflitos de legislação. A IA precisa servir às pessoas — não o contrário”, enfatiza.
Educação: o maior desafio da IA na Amazônia
Para além da tecnologia, o principal gargalo para o avanço da IA na região é a formação de recursos humanos. Francês é enfático: “Não adianta ter supercomputadores se não tivermos cérebros treinados. A inteligência artificial não é só algoritmo e máquina, ela é feita por neurônios humanos. Nosso maior desafio é formar especialistas em todos os níveis, do letramento digital ao doutorado.”
Por isso, a UFPA investe em programas de pós-graduação, capacitações e iniciativas de popularização da ciência. A meta é criar uma base sólida de massa crítica que torne o Pará, e a Amazônia como um todo, autônoma na criação e aplicação de tecnologias que respeitem sua realidade social, econômica e ambiental.
Tecnologia a serviço da vida
Tanto Francês quanto Evelin concordam que a inteligência artificial, quando bem aplicada, pode salvar vidas. Seja na detecção de doenças graves em comunidades isoladas, na gestão mais eficiente de uma cidade ou na preservação do meio ambiente, a IA tem potencial transformador.
Mas, para isso, é preciso compromisso com a ética, adaptação à realidade local e foco nas pessoas — não na tecnologia como fim em si mesma.
“Estamos criando um modelo amazônico de IA”, resume Francês. “Um modelo que respeita a diversidade, enfrenta a desigualdade e transforma tecnologia em cidadania.”
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