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Com discurso de sustentabilidade, produção de dendê na Amazônia ataca quilombolas e indígenas

Nos sites das empresas, fala-se em respeito ao meio ambiente. Mas, na prática, a realidade é de danos à natureza e às pessoas

Dilson Pimentel

Vítimas de uma série de violações, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e colonos da zona rural de Tomé-Açu e Acará, no nordeste paraense, sofreram nos últimos dias um novo ataque. Eles acusam a empresa Brasil BioFuels (BBF) de ter cavado grandes crateras na região para impedir o acesso dos moradores. Para amenizar os transtornos, os moradores aterraram essas valas, para que pudessem transitar pelo local. O Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) já determinou que a BBF interrompa esse tipo de procedimento.

Para amenizar os transtornos, os moradores tiveram que aterrar essas grandes valas, para que pudessem transitar pelo local. “Eles (a empresa) trazem os danos, os impactos e não querem que a gente transite em nossos territórios. E ainda chamam a gente de invasor, sendo que invasor são eles mesmo”, afirma Paratê Tembé, presidente da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açú (AITTA).

Os moradores relatam que tiveram que montar bloqueios para proteger seus territórios das ações da BBF, que incluem intimidação, danos ao meio ambiente e criação de obstáculos nas vias utilizadas pelas comunidades. Os moradores dizem que, assim, impedem que os funcionários da empresa continuem causando danos a essas populações tradicionais. Segundo eles, o uso de agrotóxicos nas plantações de dendê da BBF contaminou o meio ambiente. O dendê ficou perto da margem dos rios e o veneno escorre para as águas.

A contaminação de rios e igarapés causa doenças de pele e estomacais aos moradores. O rio sempre foi usado para o banho, para lavar utensílios domésticos e, também, para o sustento das famílias, com a pesca de peixe. O plantio de dendê está nos territórios daquelas populações. "Queremos que essa empresa saia de perto de nós”, diz Paratê Tembé.  

image Acessos às comunidades indígenas e quilombolas da região do Alto Acará estão sendo obstruídas com buracos e obstáculos como forma de intimidação (Thiago Gomes / O Liberal)

BBF invadiu territórios indígenas, diz presidente de associação

Em dezembro passado, Paratê gravou um vídeo dizendo que recebera informações de que a empresa BBF estava “reunindo seus capangas, seguranças e pistoleiros para invadir” o território indígena Turé-Mariquita, em Tomé-Açu. “A empresa invadiu nossos territórios, chegou com seus projetos, trazendo contaminação para as nossas águas, matando nossos igarapés, matando nossa fauna e flora. Mas vamos resistir”, afirma.

Paratê diz que o plantio fica perto das aldeias, desrespeitando, assim, o “limite de zona de amortecimento”, que deveria ser de 10 km em torno de terras indígenas. A Zona de Amortecimento é uma área estabelecida ao redor de uma unidade de conservação com o objetivo de filtrar os impactos negativos das atividades que ocorrem fora dela, como, por exemplo, ruídos, poluição, espécies invasoras e avanço da ocupação humana, especialmente nas unidades próximas a áreas intensamente ocupadas.

Segundo ele, deve ser feito o Estudo do Componente Indígena (ECI), para identificar e analisar os impactos do empreendimento sobre as terras e povos indígenas, em seus aspectos ambientais e sociais, e a posterior compensação pelos danos causados durante todos esses anos. “...Custou vida, custou a saúde, a dignidade nossa”, afirma.

“Eles podem arrancar as árvores de dendê, reflorestar e deixar lá. Assim, as ‘cabeças’ de igarapé regeneram, não secam. E vão (a empresa) para outro lugar, mas deixa nós em paz. A gente quer que eles saiam de perto de nós”, completa ele, afirmando que a empresa tem seguranças portando armas de grosso calibre.

image Peretê Tembé mostra as obras que a comunidade precisou fazer para garantir a trafegabilidade (Thiago Gomes / O Liberal)

Conflito já resultou morte de uma liderança quilombola

Josias Dias dos Santos é coordenador da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará (Amarqualta). A entidade engloba seis comunidades quilombolas que se localizam no município de Acará: Vila Formosa, Turé, 19 do Maçaranduba, Monte Sião, Ipitinga-Mirim e Ipitinga-Grande.

São 400 famílias, em torno de 1.800 pessoas. “Nós enfrentamos vários problemas, principalmente quando se fala de impacto gerado por essas empresas de dendê que chegaram aí. Elas valorizaram muito as áreas, para vender, e, com isso, gerou muito conflito aqui dentro”, disse.

Mais conhecido como Jota, ele diz que, nesse conflito, já houve a perda de liderança deles, entre os quais Nazildo dos Santos Brito, assassinado em 2018 na estrada de acesso ao assentamento Turé III, em Tomé-Açu. “Mas, antes do Nazildo ser morto, ele foi marginalizado, processado, preso e, depois, assassinado. Uma forma de criminalizar a nossa luta. O nosso objetivo é buscar os nossos direitos que estão escritos na lei”, diz. Ainda segundo Jota, quando as comunidades buscam seus direitos “encostam” em muitos problemas.

“Eles nos isolam. E, quando não conseguem prejudicar dessa forma, processam, mandam para a cadeia e mandam mandar. Essa empresa, assim como foi feito pela Agropalma (em relação aos quilombolas, em Tailândia), usa escavadeira para escavar na estrada, formar imensas valas e evitar a passagem das pessoas da comunidade”, diz Jota.

Há uma semana, conta, a comunidade quilombola do Turé, que faz parte do território quilombola Amarqualta, ficou isolada e “centenas de famílias ficaram sem poder de ir pra cidade para fazer uma compra, vender seu produto na feira, cuidar da saúde. Ele também comentou sobre os bloqueios montados pelas comunidades. “Temos processos dentro dos órgãos públicos - há 10 anos no Incra e 12 anos no Iterpa - e não é feita a demarcação. Essa espera gera uma coisa muito ruim. Nesse período, perdemos pelo menos três pessoas, lideranças da Amarqualta que foram assassinadas cruelmente por omissão do governo, de quem faz a demarcação”, contou.

E acrescentou: “O que estamos fazendo agora é agindo e mobilizando a comunidade: estamos dizendo assim: ‘o nosso território é até aqui, enquanto o poder público não fizer o seu papel nós vamos fazer. Vamos proteger o nosso território. Estamos botando a sinalização, pintando e dizendo: ‘aqui é nosso’. E a empresa não vai entrar aqui para jogar veneno para as nossas famílias”.

Segundo ele, é “uma tristeza muito grande a situação das comunidades. A maior desgraça que já aconteceu foi esses projetos de dendê ter entrado dentro dos territórios, comprado terras sem documentos, expulsado pessoas, causado impactos pra gente deixar de viver tranquilo. Não temos mais paz".

image Josias dos Santos lembra que a água da comunidade já foi de boa qualidade (Thiago Gomes / O Liberal)

“Muita água no rio, mas quem tem coragem de tomar uma água dessas?”

Às margens do rio Acará, na comunidade quilombola Vila Formosa, Mário Gonçalves Trindade, presidente da Amarqualta, lamenta os danos causados às comunidades. “Nós praticamente não temos água para beber, porque dá medo tomar uma água dessa aí", diz, apontando para as águas barrentas do rio. “Essa água, no inverno, sujava um pouco, mas não totalmente assim. Agora é barrenta. Se colocar em uma vasilha e deixar passar uns minutos forma aquele barro no fundo da vasilha. Não pode lavar uma roupa branca que mancha”, disse.

Mário disse que a água, antes, “era super boa. Qualquer hora descia para tomar um banho, tomar uma água. Hoje dá medo. A pessoa toma banho e, quando sai, tá coçando. O corpo só alergia. Esse problema veio pra nós depois desse plantio (de dendê)”. E completa: “Eu fui nascido e criado na beira desse rio, tenho 55 anos. É triste ver uma situação dessa aí. Muita água..., mas tem coragem de tomar uma água dessas?”.

Ele afirmou que nem todas as pessoas têm condições de ter um poço artesiano. “Mesmo assim, têm pessoas que se servem dessa água aí, não tem jeito. De uns tempos pra cá é tanto problema de doença, problema de estômago. A gente pede justiça”.

Essas comunidades ficam na zona rural de Tomé-Açu e Acará, municípios que fazem limites. E o acesso é por estradas de chão, por ramais. Em condições normais, já é muito difícil para essas populações terem acesso a serviços de educação e de saúde. E a ação da empresa agrava esse cenário.

Estima-se que a área total onde ficam essas populações tenha em torno de oito mil hectares, o equivalente a oito mil campos de futebol. “Essa é uma base. Não é um cálculo certo”, diz Paratê Tembé. Há 12 aldeias na região.

image Indígenas, colonos e quilombolas de Tomé-Açu e Acará estão sendo intimidados e isolados nas comunidades pela BBF, como relatam (Thiago Gomes / O Liberal)

As empresas que produzem dendê têm ‘modus operandi’ para prejudicar comunidades

Segundo os moradores, as empresas Agropalma e BBF causam danos sociais e ambientais e ainda criam barreiras físicas para impedir o acesso das populações a seus territórios. Em seu site, a BBF informa: “Pará, desenvolvimento com respeito às pessoas e à floresta”. Porém, apesar do discurso de sustentabilidade, a prática é outra.

Em fevereiro deste ano, a Redação Integrada de O Liberal publicou reportagem mostrando que, com um longo histórico de denúncias e processos na justiça sobre danos ao meio ambiente, grilagem de terra e desrespeito aos direitos humanos contra populações tradicionais, a empresa Agropalma protagonizou mais um capítulo de afronta a moradores da região onde atua.

Os membros da comunidade quilombola Nossa Senhora da Batalha, no limite entre os municípios do Acará e Tailândia, no nordeste do Pará, foram surpreendidos com mais uma ação da Agropalma contra a comunidade. A empresa colocou, nos acessos àquela comunidade, grandes contêineres para impedir que os quilombolas saiam e entrem no território. Eles ficaram com dificuldades para comprar comida e remédio, além de ter o acesso ao rio simplesmente bloqueado.

Em outubro de 2021, a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), por meio do gabinete do deputado petista Carlos Bordalo, solicitou ao governo estadual celeridade nas investigações para apuração das circunstâncias do ataque violento a trabalhadores do Vale do Bocaia. Segundo a denúncia em vídeo, que a Polícia Civil apura, um grupo armado da empresa BBF praticou tortura contra agricultores.

A associação de agricultores afirma que desde a venda da Biopalma, a BBF passou a hostilizar pequenos agricultores. Trabalhadores rurais denunciam que são ameaçados constantemente. Em fevereiro deste ano, a BBF teria reivindicado a posse da terra, alegando invasão dos agricultores. Contudo, a assessoria jurídica da associação aponta a existência de irregularidades como falsificação de documentos, com envolvimento de cartórios, inclusive.

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Presidente da BBF acumula dezenas de processos na Justiça

O presidente e CEO da empresa, Milton Seagal, responde a dezenas de processos na Justiça. O empresário iniciou as atividades em Roraima, em 2008. No site Jusbrasil, Seagal está relacionado a 45 processos, tanto na esfera trabalhista, fiscal, quanto criminal.

A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informou que as investigações e mediações de casos envolvendo indígenas e quilombolas é de competência dos órgãos federais. Entretanto, caso seja necessário, equipes das Polícias Militar e Civil atuam diuturnamente nos municípios do Acará e Tomé-Açu, para manter a ordem e segurança, além de fazer a desobstrução de vias.

O MPF informou que acompanha o conflito territorial entre indígenas Tembé e a empresa BBF e entende que há uma reivindicação territorial legítima dos indígenas, porque parte da área explorada pela empresa incide sobre território reivindicado como indígena. Pela legislação brasileira, a reivindicação territorial tem que ser analisada pelo órgão indigenista, o que ainda não ocorreu. Além disso, existem impactos sociais e ambientais da atividade econômica em área tão próxima a terra indígena que precisam ser dimensionados para as necessárias compensações e mitigações, o que nunca foi feito. O MPF já tomou medidas judiciais quanto a essa irregularidade ambiental e pode tomar novas.

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