Renato Russo: morte completa 25 anos nesta segunda e reacende discussão sobre Legião Urbana
Escritor Ismael Machado analisa a importância do Legião Urbana para o rock e para a cultura brasileira

Os 25 anos de morte de Renato Russo trouxeram novamente uma discussão sobre a relevância da banda no cenário brasileiro. Falta, nas discussões, no entanto, um pouco de contextualização. Há muito ranço amargo (de algumas pessoas) sempre que Legião Urbana é citada. A banda ficou sendo odiada por muitos por causa do público que possui. Algo semelhante ao que veio a acontecer com Los Hermanos tempos depois. Como se fosse um pecado mortal uma banda ser amada incondicionalmente.
Lembro de uma frase do mago da indústria musical, André Midani. Ele costumava dizer que as gravadoras sonhavam encontrar outra Legião Urbana. Segundo ele, uma banda talentosa, que vendesse bem, sem ceder a caprichos modistas e com uma aura de honestidade.
Durante muito tempo depois da morte de Russo, a Legião continuou sendo a terceira maior vendedora de discos da Emi Odeon no mundo inteiro. É uma marca que impressiona, seja lá qual o ângulo que se queira olhar. Ou o fato de até hoje, ‘Há Tempos’ ter batido o recorde de pedidos de execuções nas rádios no dia do lançamento. Ou mesmo de apenas Frank Sinatra e Michael Jackson terem ocupado tanto tempo no Jornal Nacional no dia da própria morte como Renato Russo.
São números, índices. Para muitos não representa algo a mais do que isso. Mas volto a falar de contextualização, com base em algumas críticas que costumam ser associadas à Legião Urbana.
Critica-se a sonoridade da Legião Urbana. Vamos nos reportar à época. De 1982 a 1984, quando a Legião lançou ‘Será’, o cenário pop brasileiro tinha algumas vertentes bem delineadas no saco de gatos que era aquele nascente rock 80. Não cabem aqui análises sobre o punk paulista ou a vanguarda paulistana, movimentos mais undergrounds. Fiquemos no mainstream.
Pois bem, esse cenário era recheado de bandas digamos ‘praieiras’, ‘luminosas’. Era a tal ‘niueive’, como ironizavam na época. Placa Luminosa, Herva Doce, Rádio Taxi, Grafitte, Absintho, Dr. Silvana, entre outras, disputavam espaço com Blitz, Kid Abelha, Paralamas, Titãs. Entre 1982 e 1984, as duas únicas bandas que efetivamente estavam razoavelmente no mainstream e fugiam da estética predominante de letras pueris, visual coloridinho e músicas com batidas semelhantes eram Barão Vermelho e Camisa de Vênus. Ambas lançaram os primeiros discos em 1982. Barão era mais visceral que seus pares, muito pela influência stoneana e pelas letras de Cazuza. Já o Camisa transformava músicas de bandas punks como The Jam e Buzzocks em suas (o que eram “Passatempo” e “O Adventista”?).
Só que tanto Barão Vermelho quanto Camisa de Vênus ressentiam-se de uma produção mais adequada às ideias sonoras que possuíam. Vale destacar que havia uma espécie de fórmula para as músicas. A bateria com uma sonoridade meio computadorizada, típica da New Wave, o baixo quase sem força e uns solinhos de guitarra com mixagem baixa e sem potência alguma.
Esse é o primeiro ponto a se destacar na Legião Urbana. Quando o então quarteto lançou “Será”, no final de 1984, a banda surpreendeu os desavisados. O som era ‘cheio’, a bateria mixada de forma que quase não se via no Brasil, e a música sem firulas de solinhos chochos. Era uma sonoridade compacta, que acertava em cheio. A letra da música também chamava a atenção. “Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você, não é me dominando assim, que você vai me entender…”. Pense no período. Era 1984, o último ano do regime militar. E Renato Russo habilmente jogava com a ambiguidade na letra. Poderia ser uma polaroide instantânea do momento político, mas ao mesmo tempo era pessoal. Era íntimo.
Não se via isso então. Esse é um fator importantíssimo para se entender o fascínio da Legião. O primeiro disco vinha com a recomendação: ouça no volume máximo. Não era uma figura de retórica. Nenhum disco lançado em 1985 tinha aquela qualidade de produção. 1985 foi o ano de “Televisão”, dos Titãs, um disco ainda indeciso. Foi o disco do primeiro do Ira!, “Mudança de Comportamento”, talvez o único álbum que ombreasse com a Legião nesse quesito sonoridade. Mesmo o anárquico “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, do Ultraje a Rigor, perdia em potência na caixa de som.
Com o primeiro disco, a Legião também ajudou a solapar as bandas fajutas e oportunistas e engraçadinhas que se proliferavam. Foi o disco que fez com que muita gente sonhasse em ter uma banda de rock. Pode-se tentar ignorar o que representou sonoramente “Geração Coca-Cola”, mas eis uma música que continha intensidade, agressividade, urgência e uma letra que conseguia dar conta de um recado importante no período. Quando essa geração 80 começou a tomar conta dos espaços, seja na música, na literatura, nas artes plásticas ou no cinema, foi acusada de tudo o que não presta. Principalmente de alienada. É necessário entender a época para analisar o que dizem as letras da Legião Urbana.
Em 1985 a Legião surgia como um saudável sopro de novidade no pop nacional. E é importante mais uma vez analisar de forma contextualizada essa aparição. O rock brasileiro parecia fosco, pobre de argumentos e informação. Renato, no entanto, tinha informação. Inexperientes, poucas bandas sabiam se portar no palco. Com raríssimas exceções, não havia frontman que merecesse esse nome. Pois bem, a atitude de palco de Renato Russo foi impactante. Era diferente de tudo no Brasil.
Os que falam mal disso o acusam dele simplesmente copiar trejeitos de Morrissey, Jim Morrison, Ian Curtis e quem o detrator quiser escolher. Pois bem. Vejam os vídeos de Morrissey à mesma época. Encontrem semelhanças entre o Renato que cantava “Ainda é Cedo”, no Globo de Ouro, enrolando uma camisa branca de manga comprida, com o Morrissey.
Todos temos influências.
Dizem que a Legião era apenas xerox de influências. Não se diz mais isso de Paralamas do Sucesso, por exemplo. Mas o que eram os primeiros discos da banda se não imitação pura de Police? Só que isso não desmerece o fato de que, sob essa descarada e explicita influência, era ótimo ouvir “Óculos”, “Meu Erro”, etc…
Toda a música pop foi construída sob essa gama de influências. Chuck Berry foi surrupiado por Beach Boys, e o Beach Boys anos depois serviria de ‘inspiração’ para que o R.E.M. fizesse “Near Wild Heaven”. A lista de exemplos é imensa, infinita talvez. O incensado Los Hermanos praticamente se apropria das ideias e sonoridades de Rufus Wainwright. Ninguém diz nada. E o que é o primeiro disco dos endeusados Strokes? Alguém mandou a fatura para Lou Reed, Pretenders, Iggy Pop, The Fall?
O segundo disco da Legião Urbana é o álbum que apresenta algumas das mais memoráveis canções pop do Brasil. Fato. O problema é que quem não gosta, não admite. Ora, não é preciso gostar de Bossa Nova para perceber que João Gilberto e Tom Jobim são geniais e o quanto a música deles foi importante. Você pode não gostar de Beatles, por exemplo, mas isso não quer dizer que por isso deva desmerecê-los.
Há quem diga que as letras de Renato Russo são bregas, pobres. Bom, sejamos sinceros. Se isso: ‘Preparei a minha tela / Com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar / A armação fiz com madeira / Da janela do seu quarto / Do portão da sua casa / Fiz paleta e cavalete / E com lágrimas que não brincaram com você / Destilei óleo de linhaça / Da sua cama arranquei pedaços / Que talhei em estiletes de tamanhos diferentes / E fiz, então, pincéis com seus cabelos / Fiz carvão do batom que roubei de você / E com ele marquei dois pontos de fuga / E rabisquei meu horizonte…’, fosse escrito em inglês e cantado por Wilco, Radiohead, R.E.M., qual seria a avaliação? O mesmo se pode dizer de “Andrea Doria”, ou “Tempo Perdido”… ou muitas outras canções desse mesmo disco.
Legião Urbana é sempre ridicularizada por muitos por se tratar de uma banda onde não havia músicos virtuoses. Essa talvez seja uma das maiores bobagens que se pode dizer. Primeiro porque a maioria das pessoas que diz isso nem sabe identificar direito quantos acordes tem uma canção. Repetem isso como papagaios porque a própria banda dizia isso de si própria. Era o próprio Renato Russo que ironizava a ausência de técnica do grupo. Ora, mas quantos acordes mesmo tem as músicas de Lou Reed, Iggy Pop, Ramones, Camisa de Vênus, as primeiras músicas dos Beatles, Stones, Sex Pistols? Desde quando quantidade de acordes ou virtuosismo técnico de músicos garante qualidade? Nesse sentido, as maiores bandas do mundo seriam o Toto, o Asia, o Boston, Europe… No Brasil, Herva Doce, Radio Taxi e Roupa Nova seriam a santíssima trindade musical.
Ao final do livro “31 Canções”, Nick Hornby diz o seguinte a respeito de uma canção de Patti Smith. “Por outro lado, a canção chamava-se ‘Pissing in a River’; foi tocada com guitarras, durou quatro ou cinco minutos e seu efeito emocional dependeu inteiramente dos acordes, do refrão e da atitude. Em outras palavras, é uma canção pop e como um monte de outras canções pops, é capaz de praticamente qualquer coisa”.
A Legião sabia fazer canções pop. Sabia traduzir em poucos acordes e poucos minutos (às vezes nem tão poucos assim) o que de relevante uma canção pop possui: sentimento, um certo olhar diante do mundo e uma maneira inusitada de expressar esse olhar.
Diz José Emílio Rondeau, na orelha do livro “Como se não houvesse amanhã”: “A Legião Urbana poderia ter sido apenas uma banda de rock. Mas tornou-se bem mais que um grupo musical que mudou as regras de jogo ao impor sua assinatura, sua personalidade, suas convicções e sua ética a uma indústria fonográfica que apodrecia, a um país em transição. Quando a música da banda demonstrou ser capaz de traduzir e espelhar a intrincada trama de emoções dos meninos e meninas que descobriam o mundo e a si próprios – e assim, passavam a se expor a todas as vicissitudes que isso implica, a Legião virou ícone, fábula”.
Não é jequice ou ser ‘bocó’, como afirmam alguns, reproduzir o que disseram ou pensam pessoas cujo conhecimento e sensibilidade inspiram respeito. Jornalistas como Ana Maria Bahia e José Emílio Rondeau, por exemplo, sempre ensinaram, a partir da leitura de seus textos em diversas revistas, a analisar e refletir sobre a música que gosto ou mesmo a que não gosto. A humanidade é feita de trocas de experiências. Os que dizem pensar apenas por si próprios, sem influência de ninguém, mentem. Para si ou para os outros.
Uma coisa a ser sempre lembrada é que uma manifestação artística é importante não quando as descobrimos, mas quando, por meio dela, também nos redescobrimos. “Quem cresceu – e ainda está crescendo – ouvindo músicas da Legião Urbana sabe exatamente do que se está falando aqui”.
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