Histórias das lutas de indígenas da etnia Kayapó são tema de exposição virtual
Em meio a cenário preocupante para povos indígenas, exposição "A câmera é nossa arma" apresenta rico material produzido por indígenas

Fotos e vídeos produzidos por indígenas da etnia Mebêngôkre (Kayapó) são o centro da exposição virtual “A câmera é nossa arma”, organizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, junto ao Museu Americano de História Natural (AMNH/EUA), e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia de Museus da Universidade de Columbia (EUA).
Além de fotos e vídeos produzidos pelos próprios Kayapó, a mostra também apresenta entrevistas com lideranças e uma vitrine em 3D, que será inaugurada presencialmente na Sala dos Povos Indígenas da América do Sul, no AMHN/EUA, quando as atividades do local forem retomadas. O conteúdo está disponível no site no Museu Emílio Goeldi e neste link.
O título da exposição faz referência a uma frase de Kiabieti, pioneiro cineasta Kayapó que participou da filmagem da Constituinte em 1988. “O vídeo é nosso arco e flecha, é nossa arma”, declarou ele em entrevista à National Geographic, em 2015.
“Os Kayapó têm uma capacidade fenomenal de incorporar e apropriar armas, adornos, nomes, canções e outros bens culturais capturados de seus inimigos. O uso da câmera como uma arma de autodefesa cultural e territorial parece ser uma nítida extensão dessa tradução antiga dos Kayapó de capturar e apropriar tais troféus de guerra. A câmera virou literalmente uma borduna na mão deles”, conta o antropólogo Glenn Shepard, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi e um dos idealizadores da exposição.
A exposição é um resultado do curso “Culturas em Exposição”, realizado pelo AMNH em parceria com a Universidade de Columbia. Glenn Shepard participou como professor visitante do curso durante o primeiro semestre de 2020, junto ao designer de exposições David Harvey; e a curadora de etnologia asiática Laurel Kendall, do AMNH. Nesse mesmo semestre, o grupo contou também com a colaboração de cineastas e caciques Kayapó de diferentes aldeias.
Shepard explica que por conta de seu trabalho com o povo Kayapó há mais de 10 anos, pôde consultar cineastas e caciques Kayapó de diferentes aldeias.
“Através desses contatos com diferentes membros do povo Kayapó, consegui localizar um dos líderes Kayapó, Kubei, que visitou Nova York em 1990 e conheceu a exposição no AMNH sobre povos indígenas da Amazônia, logo após a sua inauguração há mais de 40 anos. Kubei lutou juntou com ativistas históricos como cacique Raoni e Paulinho Paiakan no final dos anos 1980 contra a usina de Belo Monte”, conta.
Na mostra, é possível assistir a um vídeo produzido pelo cineasta Kayapó Pat-I, que visitou Kubei em março de 2020 e realizou uma entrevista com o ancião sobre as lembranças da visita ao Museu em 1990, e seu histórico de ativismo.
Considerando a capacidade dos Kayapó de se apropriarem de tecnologias de outros povos, a vitrine virtual que integra a exposição em formato 3D, destaca como artefatos indígenas uma câmera que pertencia a uma aldeia Kayapó; um cocar de canudos de plástico; uma braçadeira de miçanga com a bandeira do Canadá, que indica a parceria com o país; um colar peitoral de miçanga e alumínio; e uma cabaça com pintura corporal de jenipapo.
Todas as peças foram coletadas entre os Kayapó por Shepard, com contribuições também da pesquisadora Janet Chernela, da Universidade de Maryland.
Contexto de incertezas
Sociedade indígena dinâmica com mais de 12.000 pessoas, o povo Kayapó se autodenomina como Mẽbêngôkre. A pronúncia correta da palavra faz parte da exposição, assim como áudios do estilo Kaya-Pop, música produzida pelos Kayapó que mistura ritmos brasileiros.
Com uma mensagem sobre dinamismo cultural, capacidade de mudança e sobrevivência, a exposição é lançada em um contexto preocupante para os povos indígenas em todo o país.
De acordo com dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, até o dia 04 de julho, 11.385 indígenas foram infectados pelo novo coronavírus em todo o Brasil. São 124 povos indígenas com casos de contaminações e o registro de 426 mortes nesses territórios. Os estados com mais registros de mortes de indígenas por Covid-19 são o Amazonas, com 162; seguido pelo Pará, com 74; Roraima, com 43; Mato Grosso, com 41; e Maranhão, com 26.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), entre os indígenas mortos pela Covid-19, sete eram do território Kayapó localizado no Pará, onde foram confirmados até o momento 434 casos de pessoas atingidas pela doença. Entre as lideranças indígenas falecidas em virtude da Covid-19, estão Bepkaroti, cacique da aldeia Katete; o professor e intelectual Bepkraipo; Bepkororoti, conhecido mundialmente como Paulinho Paiakan; e Zé Yté Kayapó, reconhecido guardião de conhecimentos ancestrais, que colaborou com o antropólogo Darrell Posey no contexto do Projeto Kayapó, coordenado pelo Museu Goeldi.
Como o vírus está se espalhando rapidamente entre várias aldeias Kayapó, a organização indígena Associação Floresta Protegida criou um fundo emergencial especial para arrecadar recursos que permitam a realização de intervenções médicas nas aldeias mais afetadas.
Para Shepard, apesar da exposição não tratar especificamente do tema da pandemia e de abordar apenas um entre as centenas de povos indígenas da Amazônia, a sua mensagem é muito relevante no presente momento.
“A exposição fala sobre a resistência histórica do povo Kayapó, que migrou cerca de 1.600 quilômetros do cerrado do Brasil Central até a Amazônia para se defender contra os invasores portugueses. A exposição trata da luta do povo Kayapó, em conjunto com outros povos da floresta, contra a usina hidrelétrica de Belo Monte. A exposição aponta esse espírito guerreiro do povo Kayapó, a sua capacidade e criatividade em se adaptar ao mundo moderno e em defender sua cultura e seus territórios”, aponta o pesquisador.
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