Gruta expõe os porões da sociedade em 'Dorotéia', de Nelson Rodrigues, na Casa Cuíra, em Belém
Espetáculo marca a volta dessa trupe emblemática do teatro paraense após um hiato de cinco anos
Quando as máscaras caem, é “um Deus nos acuda!”, a “casa caiu!” ou, regionalmente falando, é “valendo!”. E algumas das máscaras da sociedade vão cair a partir desta quinta-feira (30) em Belém, quando o Grupo Gruta de Teatro apresentará a peça “Dorotéia - A farsa irresponsável”, de Nelson Rodrigues (1912-1980), na Casa Cuíra. Em quatro apresentações - nos dias 30 e 31 de outubro e 1 e 2 de novembro, sendo de quinta a sábado, às 20h, e no domingo, às 19h - o público vai poder conferir a densidade do texto do dramaturgo pernambucano acerca da hipocrisia, moralidade e desejo reprimido presentes nas relações sociais, contando com uma uma montagem toda conceitual do grupo paraense. Fora um grande detalhe: o Gruta retorna ao palcos, com esse espetáculo, após um hiato de cinco anos, em virtude do falecimento de seu criador, Henrique da Paz.
Esse retorno aos palcos se dá com um texto mítico e singular de Nelson Rodrigues. Trata-se de um espetáculo que mergulha no absurdo, no desejo e nas contradições humanas, construído coletivamente por artistas potentes que dão vida a essa nova criação.
No texto, depois da morte do filho, Dorotéia resolve abandonar a prostituição e procurar por suas primas em busca de uma vida virtuosa. As três viúvas, no entanto, a repudiam por causa de seu passado e por julgarem que sua beleza atrai o pecado. Para aceitá-la, elas lhe impõem uma condição: precisa ficar feia. O retorno da protagonista ocorre no mesmo dia em que Dona Flávia, a mais velha e feia da família, casará sua filha – nascida morta e de cinco meses –, Maria das Dores, com um noivo invisível!, como adianta a turma do Gruta.
Em “Dorotéia” os homens estão ausentes, só aparecendo na fala das personagens femininas. Com uma habilidade genial para ironizar e satirizar os desvios comportamentais da sociedade, Nelson Rodrigues criou um teatro único e universal que vem atravessando décadas com a mesma vitalidade. A moradia das parentes distantes de Dorotéia “é uma casa sem quartos, só de salas, onde não entra um homem há 20 anos!”, como diz o texto.
Grotesco e comédia de mãos dadas
“Dorotéia” integra a fase mítica de Nelson Rodrigues. Nessa peça, Nelson abusa de simbolismos enigmáticos, misturas de gêneros em uma linguagem onírica. Foi classificada pelo próprio Nelson como uma “farsa irresponsável” que oscila entre o cômico, o trágico e o grotesco. E este é exatamente o tom que o diretor Adriano Barroso buscou na montagem.
Adriano conta que Nelson Rodrigues é sempre atual. “Eu poderia finalizar aqui, mas vou adiante. Nesta peça, tudo é simbólico. É um retrato de nossa sociedade, seus, digamos, referenciais morais, credos. Nelson é cirúrgico quando fala do que está escondido atrás de moralismos e do tal "cidadão de bem". Mesmo escrita em 1950, a obra é moderna. Porque nossa sociedade brasileira não muda. Por isso a escolha do texto. Aliás, o Gruta é conhecido na cidade por montar textos reflexivos. Então retornar com esse espetáculo é também retornar com a alma e o pulsar de Henrique da Paz”.
Na montagem da peça, os atores atuam de formas simbólicas”. Como diz Adriano Barroso, as personagens não são necessariamente de carne e osso, mas a representação de sentimentos e dogmas sociais. “É um espetáculo sensorial, que flerta com o drama, o grotesco e a comédia”, assinala.
E o Gruta traz para o espetáculo a marca do grupo, ou seja, palco enxuto, trabalho focado no trabalho do ator, texto meticulosamente trabalhado, gestos e ações firmes e limpos. “Assim que trabalhamos há décadas. Este pensamento, imposto pelo mestre Henrique da Paz, causa uma empatia no público, é como se falasse ao ouvido de cada um, que com suas vivências irá refletir, este é o mágico do teatro. Estamos ali, cara a cara”, pontua Adriano. Ele acrescenta que “o teatro requer vida”.
Por isso mesmo, a peça envolve gerações de atrizes, com histórias de vida e experiência de palco diferentes. “Por exemplo, duelando nas personagens principais temos a atriz Zê Charone (personagem Flávia), com mais de 40 anos de teatro, e Mariana da Paz (Dorotéia), jovem atriz, porém estreou no teatro aos oito anos. Reunimos ainda Iracy Vaz (Maura), uma estudiosa em teatro, Alessandra Pinheiro (Carmelita) bastante carimbada e a jovem e promissora Krystara( personagem Das Dores), que está se formando na Escola de Teatro. Esse é o molho do espetáculo”, diz Adriano Barroso, com 38 anos de carreira, 20 deles com. Foram dois meses para montar “Dorotéia”.
O espetáculo foi todo construído colaborativamente, ou seja, sem patrocínio ou edital, mas como fruto de doações de colaboradores e da própria equipe técnica da peça.
A atriz Mariana da Paz, 27 anos, é neta de Henrique da Paz. Ela tem 20 anos de carreira. “O teatro me dá vida. Não há nada melhor do que pisar num palco, claro que fui influenciada por meus pais e meu avô. Eu cresci na coxia, cresci assistindo ao Gruta entrar em cena e isso me fez querer aquilo cada vez mais. Nem lembro quando eu escolhi fazer teatro, foi muito natural”, conta.
Acerca do papel na peça, Mariana diz: “A Dorotéia é um papel difícil, cheio de curvas e detalhes. Eu encaro como o meu maior desafio até agora, foram meses de um preparo intenso até que finalmente consegui encarar a personagem. Acaba que ela tem muita coisa pra me ensinar e ser a Dorotéia me deu uma bela lição sobre a vida”. A atriz destaca que a peça pode contribuir com reflexões sobre “tabu sexual, a liberdade sexual da mulher, a influência que uma pessoa pode ter nas outras e, inclusive, pode ser uma crítica contra as religiões que restringem e apagam a mulher”.
Com 41 anos de teatro como atriz e produtora, Zê Charone ama interpretar peças de Nelson Rodrigues, tanto que tem na carreira vários espetáculos desse autor. “Quando o Adriano me convidou para fazer a Flávia, eu topei na hora e, ao conversar com o Adriano, assumi a produção do espetáculo. Vamos reaproveitar o material do acervo do Cuíra que eu tenho aqui, vamos ser auto sustentáveis, o povo do teatro é autossustentável. Tudo com nossos parceiros na mesma pegada”, diz Zê.
Para essa atriz, vale a pena o público em Belém assistir à peça, dado que, ainda que exista muita gente fazendo Nelson Rodrigues na cidade, ainda é muito pouco. “A cidade merece, as pessoas que fazem teatro em Belém precisam contar com espetáculos desse tipo”, arremata Zê Charone. O Grupo Gruta de Teatro é o de maior longevidade da Cidade de Belém. Foi fundado em 1967, por Henrique da Paz e Salustiano Vilhena.
Serviço:
Espetáculo ‘Dorotéia - A farsa irresponsável’
Nos dias 30 e 31 de outubro e 1 e 2 de novembro, na Casa Cuíra (Tv. Dr. Malcher, 287)
De quinta a sábado, às 20h, e no domingo, às 19h
Ingressos: R$ 30,00
Informações: (91) 98250-9480
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