Democratização do cinema abre discussão sobre acesso à cultura
Tema da redação do Enem deste ano joga luz sobre realidade do lazer e entretenimento de milhares de brasileiros

O tema da redação do Enem 2019, sobre a democratização do acesso ao cinema, abriu uma discussão profunda. Afinal, 13,5 milhões de pessoas estão na extrema pobreza. E mais de 13 milhões desempregados. A crise econômica achatou orçamentos por todo o país, levando famílias a reduzir ou cortar investimentos em lazer. Com que dinheiro o povo vai para o cinema, já que os ingressos não são baratos e as salas públicas são limitadas? O direito à cultura, lazer e informação estão presentes na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No Pará, apenas nove dos 144 municípios têm salas de cinema, como aponta o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC, 2016): Belém, Ananindeua, Castanhal, Marabá, Santarém, Paragominas, Xinguara, Tucuruí e Parauapebas. Mas mesmo nos centros urbanos e na capital, onde há uma variedade de salas de cinema comercial e salas alternativas — com ingressos bem mais em conta —, muitas pessoas não conseguem ir ao cinema.
Elielson Rosário dos Santos, de 28 anos, nunca foi ao cinema. Ele é morador da Terra Firme, em Belém. Não tem emprego fixo e faz apenas serviços informais com venda de alimentos. Tem dois filhos, que moram com a mãe deles, e ele mora com o primo e o tio. “Meu filho mais velho, de 11 anos, me cobra que quer ir. Mas a gente nem sabe como ou onde. Ou os preços. Lá onde moro, quando dá tudo certo, nossa renda mensal é de R$ 900. A gente assiste filme na TV. Compra o DVD no pirateiro. Dizem que é errado, mas é o trabalho deles e como eles garantem que a gente consiga assistir as coisas. A gente até desconhece onde tem ingresso mais barato, quando tem promoção. Não chega aqui isso”, disse Elielson.
“O acesso à cultura, à diversidade cultural e o direito à livre expressão estão assegurados na Constituição Federal de 1988. Portanto, estamos falando também de direito ao acesso ao cinema. Isto é, a uma das formas mais poderosas e fascinantes de cultura. Inclusive, estratégica para qualquer país minimamente preocupado com a defesa e preservação de sua identidade cultural”, comenta a Ana Cláudia Melo, professora doutora do curso de Cinema e Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sem acesso
Um estudo da Motion Picture Association na América Latina (MPA-AL), com apoio do Sindicato da Indústria do Audiovisual (Sicav), em 2016, apontou que 46% da população brasileira não têm acesso a nenhum tipo de cinema. Em dados apresentados na prova de redação do Enem deste ano, 17% da população frequentava o cinema.
Em 2010, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que 18,4% da população dizia ter horário de lazer de sobra. Outros 35,4% afirmaram que o tempo é insuficiente para fazer tudo o que se deseja. E 44,9% disseram que o horário de lazer até é suficiente, mas costuma ter outra coisa para fazer do que se dedicar, integralmente, ao descanso. Em nível nacional, muitos cineastas e acadêmicos de cinema têm dito que essa democratização, proposta na redação do Enem, ainda é distante.
Produção audiovisual faz retrato cultural da população
Francisco Batista, o Zeca da TF, é um dos membros fundadores do Tela Firme. É um coletivo de mídia e movimento social ligado ao audiovisual do bairro da Terra Firme. Ele destaca que há formas de alcançar essa democratização, quando se pensa em realidades mais aplicadas e tangíveis da sociedade. Mas simplesmente achar que uma família em pobreza ou extrema pobreza vai sair de casa, pagar transporte e então comprar vários ingressos para uma sala comercial, ou mesmo alternativa, é uma ilusão.
“Estamos num contexto de lutar pelo básico. Tem gente que vem me pedir comida. É pobreza mesmo. Cinema é considerado um luxo. Mas cabe lembrar da música dos Titãs: a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. Essa discussão sobre o acesso ao cinema é importante. Tão importante quanto democratizar todas as formas de arte e cultura. E democratizar a riqueza”, comentou Zeca da TF.
Um dos momentos históricos do coletivo Tela Firme foi a documentário-drama “Poderia ter sido você”, que falava sobre direitos humanos e a Chacina de Belém, em janeiro de 2014. Hoje o coletivo tem um trabalho com a produção audiovisual falando sobre desencarceramento. Mas a força que movimentou a fundação do grupo foi retratar as narrativas da periferia e de toda a vida que existe distante das telas comerciais do cinema e da TV.
Zeca da TF considera o trabalho do Tela Firme como a “resistência do existir”. Uma mensagem de um bairro que tem de pouco a nada, sem teatro, sem cinema. Onde famílias no máximo assistem a programas policialescos na TV. Onde a presença do poder público é mais repressiva do que preventiva e provedora de bem-estar. “Eu às vezes acordo com o som de berimbau e capoeira por aqui. A Terra Firme foi o berço do break e do hip hop de Belém. Uma cultura com pegada política. Temos aqui a quadrilha junina Rosa Vermelha, que ganhou vários títulos pelo Brasil e foi a primeira a ter uma mulher trans. Imagine tudo isso, toda essa história e identidade num telão! Mas o que temos é muita gente acessando as redes sociais. Então esse é um foco a ser desenvolvido”, comenta Francisco.
Valorização
Izabela Chaves é acadêmica do curso de Cinema e Arts Visuais da UFPA. Também é moradora da Terra Firme e acompanhou de perto o trabalho do Tela Firme. E diz que se não fosse pelo pai que é ator — ela lembra, com orgulho, de tê-lo visto em um curta exibido no Cine Líbero Luxardo —, talvez o acesso e valorização que ela dá às várias formas de arte fosse diferente. A estudante defende, pelas discussões que o ambiente acadêmico tem proporcionado, que não há mais como ver o cinema como uma sala fechada e um projetor.
Os cinemas podem ser itinerantes. E podem estar nas telas dos celulares. São formas de se pensar alternativas, já que os antigos cineclubes se perderam na história. Izabela destaca que a Amazônia é um caldeirão cultural, cheio de experiências e narrativas, onde há muita gente produzindo audiovisual, mas sem o reconhecimento de que é um agente transformador, um representante de uma realidade. Para ela, os primeiros passos para a democratização do audiovisual seriam identificar e valorizar quem está produzindo diferentes conteúdos hoje em dia.
“Existe um cinema carioca e um cinema paulista. Está aparecendo um cinema nordestino. Por que não temos um cinema paraense? O audiovisual é uma ferramenta potente de transformação e de visibilidade da população. Essas discussões sobre democratização do cinema são muito interessantes. Porque outros espaços estão sendo democratizados, como a universidade. Na minha sala há estudantes quilombolas. Há mais negros, indígenas. Mas o acesso às iniciativas e pertencimento às salas de cinema e projetos ainda passa por outras discussões, como racismo, pobreza”, conclui Izabela.
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