Sabor paraense: a corrida diária por mangas vira cena típica no centro de Belém
O hábito é tão comum que já se tornou parte da identidade cultural da capital paraense
Conhecida como a cidade das mangueiras, Belém mantém viva uma cena cotidiana que atravessa gerações: a corrida pela manga que acabou de cair das copas das árvores. Nas ruas, praças e, especialmente, na tradicional praça da República, o hábito é tão comum que já se tornou parte da identidade cultural da capital paraense, que é famosa justamente pela abundância de mangueiras que sombreiam suas vias.
Na capital paraense, onde as mangueiras são tão tradicionais quanto o próprio açaí, o hábito de aproveitar a fartura das ruas segue firme, reafirmando uma identidade que só quem vive na capital paraense conhece tão bem: manga caiu, alguém vai logo pegar. Há poucos dias, turistas japonesas viralizaram nas redes sociais após se encantarem com esse cenário comum para os moradores de Belém: ruas cheias de mangas caídas das árvores.
O vídeo foi registrado durante a COP 30, realizada na capital paraense até o próximo dia 21. As visitantes ficaram surpresas ao ver a grande quantidade de mangas que caem naturalmente das mangueiras e se acumulam nas calçadas. A cena, que faz parte do cotidiano dos belenenses, chamou atenção pela abundância e pelo tamanho das frutas.
A COP 30, aliás, coincide com o período de safra, quando as frutas amadurecem e se desprendem dos galhos, formando verdadeiros tapetes de mangas pelo chão. Na manhã desta terça-feira (18), a reportagem da Redação Integrada de O Liberal registrou mais uma vez esse ritual tipicamente belenense: a fruta cai, alguém corre, alguém grita, alguém garante o “tesouro” antes que outro pegue. E, claro, a farinha - companheira inseparável - está sempre no imaginário de quem recolhe a fruta.
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Há quem coma a manga na hora. Outros deixam para saborear a manga com calma e com um acompanhamento tipicamente paraense: farinha. A artesã e bibliotecária Cíntia Arruda, 50 anos, trabalha na praça da República e confirmou que a “disputa” é real - e diária. Ela disse que os turistas também ficam encantados com o acesso fácil à fruta. “Com certeza, até turista, eles ficam impressionados, eles pegam. Mas, geralmente, somos nós mesmos que pegamos e os feirantes aqui da praça”, afirmou.
Ainda segundo Cíntia, o momento em que a manga toca o chão desencadeia uma verdadeira corrida: “É uma disputa. Caiu, o pessoal corre pra pegar”. E, na manhã desta terça, segunda, o saldo foi generoso: “Acho que eu já peguei mais de 10. Tá tudo ali na sacolinha”. Cíntia explicou que consome as frutas de duas formas: “Levo pra casa, consumo aqui. Aqui não dá pra comer com farinha, mas lá em casa tem todo aquele ritual sagrado com farinha”, contou.
A artesã destacou que esta é, sim, a época em que mais mangas caem. “Sim. Mais pra parte da manhã, quando tá bastante vento. Isso todo dia”. E quando a manga cai no meio de um atendimento ao cliente? “Aí, nesse caso, o outro colega corre na frente pra pegar. Ou então a gente grita: ‘pega, pega, pega’. O importante é não perder a manga”, disse, sorrindo.
Outro personagem do cotidiano das mangueiras da praça da República é Reginaldo Pacheco Nascimento, lavador de carros de 65 anos. Ele trabalha na praça“desde moleque”, levado pelo pai, e, desde então, mantém o hábito de recolher mangas que caem das antigas árvores da praça. “Pego a manga. Eu como, levo pra casa também. Dou para as minhas vizinhas também”, afirmou. E não há dúvida sobre o modo preferido de consumir a fruta: “Com farinha”, contou. Reginaldo confirmou que esta é uma temporada forte de quedas: “Cai muita manga. Daqui a pouco, cai”. A quantidade que recolhe por dia impressiona: “Eu levo um saco até a 'boca” (ou seja: bastante cheio). Todo dia. Chove, cai manga, eu levo. Na chuva também”, disse, para completar que esse é um hábito que carrega desde a infância: “Sim. desde muito cedo”.
"Lugar abençoado por Deus", diz pedreiro
Na Governador José Malcher, pedreiro recolhe 20 mangas em poucos minutos e celebra tradição da safra em Belém Enquanto aguardava o ônibus da empresa onde trabalha, na avenida Governador José Malcher, o pedreiro Aldo Manoel, 49 anos, aproveitou a safra de manga em Belém para recolher frutos que haviam caído das mangueiras centenárias da via. Em cinco minutos, ele encheu uma pequena sacola com cerca de 20 mangas. Aldo disse que não costuma passar diariamente pela área. Mas, sempre que o trabalho o leva ao centro da cidade, ele aproveita a oportunidade.
“É só quando eu venho para cá, através da empresa, quando a gente vem prestar algum serviço aqui para esse rumo daqui, que aí eu vejo quando tem no chão e eu fico catando, para levar para casa, porque é um fruto gostoso. Todo mundo come”, contou. Segundo ele, a prática virou um costume familiar: “Quando eu tenho a oportunidade de vir para cá, para esse lado, eu junto algumas que quando cai, para me levar para casa, aproveitar com a minha esposa, que gosta também”
Mas Aldo reconheceu que a safra causa transtornos, especialmente para motoristas, porém destacou que, para muitas pessoas, a fartura é vista como um presente da cidade. “Para quem tem carro é um prejuízo. Mas, para nós, é benção, de juntar e poder levar para compartilhar com a nossa família. Eu acho bom”, disse. Embora não seja fã assíduo da fruta, ele contou que a esposa compensa: “Olha, eu não como muito. Mas a minha esposa ela come demais. Gosta muito. Quando eu tenho a oportunidade de vir trabalhar aqui para o centro da cidade, que eu vejo, que é no chão, e eu levo para ela”
Aldo acrescentou: “Eu posso dizer que nós vivemos num lugar abençoado por Deus. Tem de tudo. E, para onde eles (os turistas) moram, tem, mas é caro. E nós temos aqui a de abundância que, muitas das vezes, estraga”. O pedreiro citou outras frutas que se espalham pela cidade: “É manga, é jaca, é jambo... Isso é muito interessante para a nossa cultura, para a nossa Belém”, disse. Apesar da fartura, Aldo destacou a importância de manter o cuidado com as mangueiras históricas de Belém, muitas ameaçadas pelo tempo.
“Eu acho que mais órgãos públicos têm mais que dar uma olhada mesmo para essas mangueiras, ainda mais essas centenárias, que já tem muito tempo já. Eles têm que dar mais uma olhada... para não ter muito prejuízo também, tanto para o ambiente como para os pedestres e para quem tem carro. Mais atenção para elas”, observou.
"Árvores de Natal da cidade", diz historiador
Durante a COP 30, enquanto milhares de visitantes observam com surpresa as mangueiras carregadas nos bairros centrais de Belém, o historiador Diego Pereira lembrou que essas árvores não são apenas um elemento da paisagem, mas parte da própria identidade da capital paraense. Ele afirmou que, nesta época do ano, as mangueiras funcionam praticamente como “árvores de Natal” da cidade.
“Eu tenho afirmado, inclusive, que as nossas árvores de Natal são as mangueiras”, disse. “Nesse período, elas estão bastante frondosas e os frutos, como é comum na nossa região, caem a partir dessa época e vão até março, que é quando elas estão mais cheias. Culminou exatamente com esse momento da COP", comentou.
Origem asiática e chegada ao Pará
Diego explicou que as mangueiras têm um percurso histórico marcado por políticas urbanas e paisagísticas: “As mangueiras vêm da Ásia. Elas são trazidas da Ásia para cá, para o Brasil, e chegam ao Pará ainda no século XVIII, a partir da organização de uma política paisagística”. A ideia era construir um ambiente mais agradável, contemplativo e adaptado ao clima tropical. Nesse processo, destaca-se o trabalho de arquitetos e urbanistas, entre eles o italiano Antônio Landi.
“Ele vai instituir, junto com outros - não somente ele - essa ideia de trazer a mangífera indica L., que é o nome científico da mangueira, como parte de um projeto para melhorar o clima e a paisagem da cidade”, explicou. O processo se intensificou no século XIX, durante a gestão do intendente Antônio Lemos. “Antônio Lemos faz uma requalificação urbanística e dá ainda mais sustentação a esse modelo de estruturação pautado também no desenvolvimento dessas mangueiras”, disse Diego. Esse movimento coincidiu com a expansão urbana de Belém para além da Cidade Velha e da Campina, levando a árvores a ocupar ruas inteiras dos bairros que hoje formam o centro expandido da capital.
Onde elas se concentram hoje
Segundo o historiador, a distribuição das mangueiras em Belém revela parte da história urbana da cidade. “Elas estão hoje, principalmente, em áreas centrais, com destaque para Nazaré, Batista Campos e o Umarizal. A grande maioria está em Nazaré; depois, Batista Campos; e, em seguida, o Umarizal”, explicou. Diego observou que esses bairros correspondem justamente às áreas de expansão urbana dos séculos XVIII e XIX: “Você não vai observar essa presença de forma tão forte nas periferias, mas nas áreas centrais, onde a cidade se estruturou e passou a se expandir.”
Por que a mangueira foi escolhida?
A escolha pela espécie não foi por acaso. “A grande indagação é: por que as mangueiras? Porque elas proporcionam grande benefício à população local, especialmente a sombra”, afirmou. Além disso, elas compõem o visual da cidade, ajudam na aclimatação urbana, decoram vias e calçadas e até geram renda para quem coleta e vende os frutos. O historiador lembrou que, embora amadas pelos moradores e admiradas pelos visitantes, as mangueiras também trazem desafios. “Elas causam problemas: muitas vezes caem sobre carros, interrompem calçadas, caem nas nossas cabeças”, disse. Mas, ao mesmo tempo, representam um hábito profundamente paraense. “É muito comum que, nesse período, você veja apanhadores em cada esquina. É cultural: você passa, pega uma manga, leva para casa - ou come ali mesmo, se der.”
Para Diego Pereira, as mangueiras representam mais do que paisagem: elas fazem parte da forma como os paraenses se relacionam com a cidade. “As mangueiras são parte da nossa simbologia cultural, dessa transformação urbanística e também da nossa alimentação. Fazem parte da forma como nós, enquanto paraenses, nos relacionamos com as frutas e, em particular, com a manga".
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