'Minha dor virou força': vítimas de escalpelamento lutam por prevenção e visibilidade 

o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento, celebrado em 28 de agosto foi instituída pela Lei nº 12.199/2010 como forma de chamar atenção para o problema, incentivar a prevenção e dar visibilidade às vítimas

Bruna Lima Santa Casa de Misericórdia do Pará

No Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento, celebrado nesta quinta-feira (28/8), histórias como a de Raísa Oliveira revelam a força de meninas e mulheres atingidas por esse grave acidente ainda existente em comunidades ribeirinhas. Na Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belém, o Espaço Acolher transforma dor em cuidado e luta por políticas públicas.

No silêncio cortado pelo motor da embarcação, Raísa Oliveira, então com apenas oito anos, se abaixou para pegar um objeto no fundo do barco. Era outubro de 2011, no rio Cupijó, no interior do Pará. Um segundo de descuido, aliado à falta de informação e segurança, foi o suficiente para que seu cabelo fosse puxado pelo eixo do motor. O resultado: a perda de 70% do couro cabeludo. O nome disso é escalpelamento, um tipo de acidente que, embora tenha reduzido nos últimos anos, ainda marca a vida de dezenas de meninas e mulheres amazônidas, com consequências físicas, emocionais e sociais para toda a vida.

“Eu só entendi que algo sério tinha acontecido quando cheguei à cidade. Eu não desmaiei, mas não percebi a gravidade de imediato”, conta Raísa, hoje com 23 anos, que desde então já passou por oito cirurgias. Mas mais do que a dor e o tempo de internação, ela transformou a experiência em uma missão: prevenir para que outras meninas não passem pelo mesmo. “Decidi que minha dor seria minha maior força. Falo nas igrejas, escolas, comunidades, sempre digo: meninas na frente do barco, cabelo preso, sempre”, alerta.

O escalpelamento é caracterizado pelo arrancamento brusco do couro cabeludo, geralmente causado pelo contato dos cabelos longos com eixos de motor de embarcações sem a devida proteção. A prática é considerada uma violência de gênero por muitas profissionais de saúde, já que afeta majoritariamente mulheres e meninas da região amazônica, especialmente na Bacia do Marajó. Em muitos casos, o acidente acontece em embarcações familiares, operadas por pais, tios ou companheiros das vítimas.

A data de 28 de agosto foi instituída pela Lei nº 12.199/2010 como forma de chamar atenção para o problema, incentivar a prevenção e dar visibilidade às vítimas. Apesar dos avanços, ainda há muito a ser feito.

Redução nos casos, mas a dor continua

Na Santa Casa de Misericórdia funciona o Espaço Acolher, coordenado por Maria Luzia de Matos. Criado em 2006, o local oferece acompanhamento psicológico, social, educacional e médico para vítimas de escalpelamento e outras condições.

“O número de casos caiu bastante. Em 2017 ainda tínhamos registros altos. Este ano tivemos dois casos. Mas a verdade é que um caso já é muito. Nosso objetivo é que não haja nenhum”, afirma Luzia. O caminho até essa meta passa pela prevenção, informação e políticas públicas mais abrangentes. “Ainda não temos uma política pública nacional específica. Precisamos responsabilizar os municípios com mais incidência e criar ações permanentes”, defende.

No espaço, as vítimas encontram acolhimento, atendimentos terapêuticos, brinquedoteca, sala de aula e, principalmente, convivência com outras meninas e mulheres que enfrentaram a mesma dor.

A psicóloga Jureuda Duarte Guerra, da Santa Casa, acompanha de perto o impacto do trauma. “É uma violência que mutila fisicamente, mas também emocionalmente. A mulher passa a viver um luto do próprio corpo. E muitas vezes é abandonada pelo parceiro após o acidente”, relata. O trabalho psicológico é contínuo, desde a internação, quando a paciente ainda espera pela recuperação dos cabelos, até o momento da aceitação da perda irreversível. “Ela precisa se reconhecer como uma nova mulher, ressignificar sua vida, sua autoestima, seu papel no mundo”, completa.

Mães que lutam junto

Quem também enfrenta essa luta diária são as mães. Jussilene Ramos Ferreira é uma delas. Em 2024, sua filha Maria Madalena, de apenas nove anos, sofreu escalpelamento no município de Portel, no rio Pacajá. “Ela foi tirar água do barco e caiu, o braço escapuliu, e aconteceu. Foi um desespero. Moramos a 12 horas de viagem da cidade”, conta emocionada.

image Jussilene Ramos Ferreira e sua filha Maria Madalena (Foto: Igor Mota | O Liberal)

Desde então, a família vem a Belém com frequência para consultas e cirurgias. “É difícil, mas Deus é maravilhoso. Com apoio das pessoas, estamos seguindo com fé e força. E minha filha está sendo bem tratada”, diz Jussilene.

As histórias de Raísa, Maria Madalena e tantas outras vítimas mostram que o escalpelamento é evitável. A prevenção passa por atitudes simples, instalar proteção nos eixos dos motores, orientar comunidades ribeirinhas e garantir que meninas e mulheres prendam os cabelos durante a navegação.

“Pra mim, todo dia é dia de combate ao escalpelamento”, afirma Raísa. “Essa data é importante porque traz visibilidade, mostra que a gente não é só uma estatística. A gente é gente, com história, com dor, com força”, diz.

Enquanto isso, o Espaço Acolher segue sendo um refúgio de empatia e reconstrução, onde cicatrizes não são escondidas, mas acolhidas com cuidado e dignidade.

ORVAM realiza jornada de empoderamento e visibilidade para vítimas de escalpelamento 

Apesar dos avanços no estado do Pará, o escalpelamento continua gerando vítimas, principalmente entre as comunidades ribeirinhas. Sendo um acidente grave que provoca o arrancamento brusco do couro cabeludo, o problema atinge uma grande parcela de mulheres e exige políticas de prevenção e apoio socioeconômico. Por conta disso, nesta quinta-feira (28), a Organização de Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (Orvam) promove em Belém, com apoio da Praticagem Barra do Pará, uma programação especial em referência ao Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento.

Alessandra Almeida, representante da Orvam, destaca a relevância de um dia para ampliação do debate sobre a vida das vítimas após o escalpelamento. “Quando ouvimos essas mulheres, são relatos de muita dor e lutas diárias. Há relatos de abandono por parte dos maridos e palavras ofensivas de familiares e pessoas da comunidade que vive no entorno. Muitas vítimas não conseguem o tratamento onde residem e precisam usar o próprio dinheiro para tratamentos, remédios, consultas, dentre outras necessidades”, explica.

Além do acompanhamento médico e dos projetos de apoio, a Orvam busca promover o empoderamento das mulheres vítimas de escalpelamento, fortalecendo sua autonomia e autoestima. Por meio de oficinas de capacitação, cursos de empreendedorismo e espaços de escuta e acolhimento, a instituição incentiva que cada mulher retome o controle de sua vida, desenvolva habilidades próprias e se sinta valorizada na sociedade. Esse enfoque não apenas contribui para a recuperação emocional, mas também cria oportunidades para que elas se tornem protagonistas de suas histórias, transformando dor em resistência e esperança.

Serviço

  • Evento em alusão ao Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento
  • Data: 28/8
  • Hora: 9h
  • Local: Sede da Orvam. Av. João Paulo II, 134 - Castanheira, Belém - PA
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