Setenta mil assinaturas por mulher no STF: 'Falta de diversidade cria déficit democrático'
Em toda a sua história, o STF teve apenas três ministras: Ellen Gracie, Rosa Weber e Cármen Lúcia, a única ainda em exercício, com aposentadoria prevista para 2029
A advogada Marina Pinhão Coelho Araújo, vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), está por trás do abaixo-assinado que alcançou mais de 70 mil adesões em defesa da indicação de mulheres para o Supremo Tribunal Federal (STF).
"É um abaixo-assinado pessoa física, cidadão, sociedade civil", afirma em entrevista ao Estadão.
Em toda a sua história, o STF teve apenas três ministras: Ellen Gracie, Rosa Weber e Cármen Lúcia, a única ainda em exercício, com aposentadoria prevista para 2029.
"Hoje, o que a gente tem, a meu ver, é um déficit democrático nas respostas e nas decisões do STF em razão da pouca diversidade do tribunal", avalia a advogada.
"O STF só tem homens brancos de uma determinada classe social e idade. Isso não aproxima as decisões da realidade", acrescenta.
A campanha teve início depois que o ministro Luís Roberto Barroso antecipou a aposentadoria. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda não escolheu o sucessor, mas os principais cotados são homens.
É a terceira indicação de Lula ao STF no atual mandato. Em 2023, com a saída de Rosa Weber, apesar as pressões pela nomeação de uma mulher, o presidente escolheu Flávio Dino para a vaga da ministra. Antes disso, colocou Cristiano Zanin, seu advogado, no lugar de Ricardo Lewandowski.
O movimento encabeçado por Marina, com apoio de outras advogadas, olha para o futuro. A ideia é começar a sensibilizar o governo sobre a pauta, mirando as próximas indicações ao tribunal.
"A gente precisa entender da presidência qual tem que ser o movimento para ter mulheres viáveis nesse papel. Não estamos sugerindo nenhum nome específico. É um movimento amplo pela questão do gênero", explica.
O grupo tem consciência de que a indicação para a vaga de Barroso está avançada e que dificilmente uma mulher será a escolha do presidente, mas quando a poeira baixar as advogadas pretendem buscar uma aproximação com o Planalto.
"Esse movimento não é contra Jorge Messias, não é contra Rodrigo Pacheco, é uma coisa mais ampla", afirma.
"O presidente não é avesso a essa pauta. Só não acho que o diálogo é possível em momentos de enfrentamento e tensão. Acho que a gente tem que conversar de uma forma mais ampla para realmente construir uma escada."
Leia a entrevista completa:
Como esse movimento começou? O governo tem indicado várias mulheres em outros quadros, mas quando chega no STF não há nem mulheres cotadas. Como a gente teve aqui uma vaga meio surpresa, porque o ministro Barroso antecipou a aposentadoria, não tinha uma movimentação pela escolha de uma mulher. Por isso a gente fez o abaixo-assinado. É um abaixo-assinado pessoa física, cidadão, sociedade civil.
Como tornar candidaturas femininas viáveis? Essa articulação não pode ser feitas na semana da indicação. A ideia é começar um movimento para trazer esse pleito mais perto da Presidência da República, entendendo que a prerrogativa de fazer a escolha é do presidente. A gente precisa entender da presidência qual tem que ser o movimento para ter mulheres viáveis nesse papel. Não estamos sugerindo nenhum nome específico. É um movimento amplo pela questão do gênero. Vamos tentar uma aproximação depois da indicação dessa vaga.
Como? A nossa ideia é conversar com as ministras mulheres. É o início de um processo coletivo. A gente vai ter que se aproximar do Executivo e tentar entender como isso é possível. Eu acredito nesse diálogo. O presidente não é avesso a essa pauta. Só não acho que o diálogo é possível em momentos de enfrentamento e tensão. Acho que a gente tem que conversar de uma forma mais ampla para realmente construir uma escada.
Chegaram a procurar alguém do governo? Não. Eu penso que esse movimento não pode ser feito no momento em que o presidente está para indicar alguém. Nossa ideia é conseguir mais assinaturas, chegar em 100 mil, e aí, depois da indicação, tentar fazer uma aproximação para entender como que a gente pode, como um movimento, como sociedade civil, ter essa possibilidade. A gente pode ter mulheres que tenham tanta confiança quanto os homens, a gente só precisa organizar essas mulheres perto da presidência também. Esse movimento não é contra Jorge Messias, não é contra Rodrigo Pacheco, é uma coisa mais ampla. A gente precisa, como sociedade, pensar nisso.
O movimento também abrange a questão racial? A gente quer ampliar a discussão para a questão da raça porque nós nunca tivemos uma mulher negra no STF. Basta olhar para a sociedade brasileira para perceber que quem sustenta esse País, na base, são as mulheres negras, que são a rima de família. A gente precisa corrigir essa dívida. Recentemente algumas ministras negras foram indicadas ao TSE, então eu acredito que as pessoas já estão olhando para isso.
Corremos o risco de ter um STF totalmente masculino a partir de 2029, com a aposentadoria de Cármen Lúcia? Eu não acredito nesse risco. Acho que o presidente tem isso na cabeça, ele sabe da necessidade de ampliar a presença de mulheres no STF. O presidente ganhou a eleição de 2022 muito a partir de uma adesão maciça do gênero feminino. Mas nós estamos atualmente em uma posição muito ruim. Se você olhar, por exemplo, a corte americana, a corte alemã, há muito mais mulheres. São sociedades em que metade de população é composta por mulheres, como no Brasil. No STF temos uma única ministra, o que corresponde a menos de 10% do tribunal. Então a nossa situação é muito grave, mas acredito que com este movimento nós vamos conseguir novas indicações, até porque o Executivo hoje entende essa necessidade, porque o presidente tem nomeado várias mulheres para outros cargos. A gente precisa agora mobilizar para ter uma mulher no STF também, uma não, que a gente possa minimamente equalizar essa quantidade.
Proximidade e confiança têm sido critérios cada vez mais presentes na escolha dos ministros do STF. Uma mudança para tornar o tribunal mais representativo poderia ou deveria passar por alterações nos critérios de nomeação? Nós não temos essa demanda. Os critérios estão postos. É óbvio que sempre dá para melhorar as práticas, mas as condições de notório saber jurídico e reputação ilibada têm conteúdo.
O CNJ aprovou medidas administrativas para assegurar a paridade de gênero no Poder Judiciário. O conselho não tem jurisdição sobre o STF. O Congresso poderia fazer algo semelhante em relação ao Supremo?
A situação do STF é diferente. Mas essa regra do CNJ é muito válida porque vai trazendo aí uma oxigenação no sistema, e da base isso começa a subir. Com certeza vai ter efeito lá na frente. Eu sou otimista. Acho que mesmo só tendo uma mulher no STF hoje, o nosso sistema como um todo já está muito mais oxigenado. A gente tem agora várias juízas que são presidentes das associações. O ministro Fachin convidou várias mulheres para trabalhar com ele na presidência do STF e no próprio CNJ. O ministro Barroso fez isso também. Tudo isso gera um caldo para transformar a situação no Supremo.
Os ministros do STF deveriam aderir à campanha? A gente não tentou a aproximação com os ministros, nenhum ministro, nem do STJ, nem do STF, porque nós estamos em momento em que o presidente está com uma decisão para ser tomada. O STF é um poder assim como é o Executivo. Assinar o abaixo-assinado seria uma manifestação a respeito de uma decisão que o outro poder tem que tomar. Então a gente não quis pedir. Outra coisa é o ministro se manifestar, o ministro Barroso fez, vários outros fizeram, a ministra Carmem Lúcia veio aqui na USP e deu uma declaração dizendo da importância da gente ter representatividade feminina no tribunal e tudo mais. Mas gente queria tratar muito da sociedade civil. E envolver essas pessoas é envolver de alguma forma o poder. Não é disso que a gente está falando.
Qual a importância de um Supremo Tribunal Federal representativo que espelhe a diversidade da sociedade? O Supremo é o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro. Ele decide questões que vão além dos casos em específico, questões constitucionais, questões que dizem sobre o Brasil. E quando a gente tem um Supremo que reflete o que a sociedade realmente é, essas decisões vão ser muito mais próximos da sociedade. Se eu tiver uma juíza mulher, um juiz homem e um juiz negro, ou uma juíza negra, as decisões vão ser muito mais legítimas porque vão ter vários olhares e dali saem decisões que são muito mais próximas do que a sociedade é. Hoje o STF só tem homens brancos de uma determinada classe social e idade. Isso não aproxima as decisões da realidade. A corte constitucional acaba se distanciando do papel dela, que é defender os direitos fundamentais. Então, na verdade, se eu tenho uma corte mais diversa, eu vou ter os diversos olhares da sociedade. Hoje, o que a gente tem, a meu ver, é um déficit democrático nas respostas e nas decisões do STF em razão da pouca diversidade do tribunal.
Como a falta de diversidade afeta a legitimidade do tribunal? Aumentar a proximidade, os olhares sociais, reais e efetivos, das diversas pessoas e da sociedade brasileira como um todo, aumentam essa legitimidade. Hoje eu só tenho homens brancos decidindo todas as questões do Brasil. Essa legitimidade é menor do que se eu tiver um tribunal que tem homens brancos, mulheres pretas, mulheres brancas e homens pretos. Outras formas de diversidade também, como de pessoas transgênero. Porque aí você tem uma proximidade maior com os problemas da sociedade. Como nós estamos falando em relação ao gênero, mais de 50% da sociedade brasileira é mulher, então isso escancara muito a falta de legitimidade. São só homens decidindo sobre a vida no País. E metade, mais da metade, possivelmente é mulher.
Por que o número de ministras na história no STF é tão pequeno? Já pensei muito nisso, eu não sei. Porque veja, se a gente olhar a sociedade brasileira como um todo, ela é uma sociedade patriarcal, machista e tudo mais, mas ela tem tido avanços consideráveis nos últimos tempos. Não sei porque a gente não consegue aportar essa diversidade e essa legitimidade social ao STF. Nós já tivemos uma presidente mulher. Eu não sei explicar porque que a gente tem esse atraso no Judiciário.
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