Por meio do genoma, cientista indígena da UFPA revela origens do povo brasileiro em pesquisa
Putira Sacuena iniciou sua jornada científica na Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2012. Atualmente é a única bioantropóloga indígena do Brasil

O DNA é um fio invisível que entrelaça o ontem e o agora. É também uma memória cristalizada que pode revelar feridas e resistências. A partir do sequenciamento completo do material genético de 2.723 brasileiros, que inclui pessoas de áreas urbanas e de populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas, uma pesquisa do projeto Genoma Brasil confirmou cicatrizes há muito contadas sobre miscigenação. Todo o material foi analisado pela equipe liderada por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o Ministério da Saúde. E entre os pesquisadores está Putira Sacuena, que iniciou sua jornada científica na Universidade Federal do Pará (UFPA) e atualmente é a única bioantropóloga indígena do Brasil.
Integrante do povo Baré, do território Médio Rio Negro, no Amazonas, Putira diz com orgulho ser fruto das políticas afirmativas na UFPA. Em 2012, ela iniciou o curso de Biomedicina. A pesquisadora recorda o período de lutas contra o silenciamento e invisibilidade que ainda são desafios para a permanência de estudantes indígenas no meio acadêmico. O apoio de figuras como a professora Zélia Amador de Deus – atual Superintendente de Políticas Afirmativas e Diversidade da UFPA, foram vitais para vencer o adoecimento causado pelo racismo estrutural ainda forte na sociedade.
“Não sabiam quem éramos nós dentro da própria universidade, mesmo estando ali na beira do rio, no centro da Amazônia. As pessoas não nos conheciam”, relembra a ex-aluna, que presidiu a Associação dos Povos Indígenas Estudantes da UFPA por três mandatos. Para ela, as políticas afirmativas não apenas garantem acesso, mas também transformam a comunidade acadêmica: “o quanto a UFPA também aprendeu com a nossa presença”, comemora. A política afirmativa para indígenas na universidade foi instituída em 2009, proposta pela professora Jane Felipe Beltrão, e já resultou no ingresso de 789 estudantes de diferentes etnias nas graduações.
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Já naquela época o interesse pela Genética pulsava, especialmente pelo desejo de trazer a Antropologia enquanto diálogo entre outras ciências. E falar a partir da Amazônia tornou tudo mais interessante.
Logo, o crescimento profissional da pesquisadora é mais que uma conquista pessoal: representa a inserção e o protagonismo dos povos indígenas em espaços científicos tradicionalmente negados a eles. A trajetória acadêmica de Putira passa pela Biomedicina, Bioantropologia e Genética Forense — campos pouco frequentados por pesquisadores indígenas.
Putira já esteve do outro lado: a indígena que era objeto de estudo. Nesse sentido, estudar Genética foi uma forma de desconstruir mitos e trazer essa área do conhecimento para mais perto dos povos tradicionais. “A gente traz os povos indígenas para um lugar que eles nunca estiveram”, destaca.
Ela destaca que o DNA vem confirmando a nossa História, “as cicatrizes de violência que não podem ser invisibilizadas num processo de miscigenação”. A pesquisa, para ela, é um instrumento de memória, de resistência e de afirmação. “As pessoas falam de miscigenação, mas eu prefiro falar dos povos que formam o Brasil”, diz Putira, crítica ao apagamento histórico implícito no termo.
A bioantropóloga indígena: um lugar único
Putira é autora de tese que articula Epidemiologia, Genética e Antropologia. “É uma área nova, principalmente fora do Brasil. Aqui só temos dois lugares que trabalham a Antropologia nos quatro campos: o Museu Nacional e a UFPA”, explica. Também assina o artigo publicado na Science o professor da UFPA João Farias Guerreiro. Orientador de Putira no Laboratório de Genética Humana e Médica da UFPA, ele apontou uma particularidade: o fato de ser a única bioantropóloga indígena no Brasil e talvez no mundo.
A escolha pela bioantropologia, tradicionalmente dominada por pesquisadores não indígenas, é carregada de significado: “eu trago uma Antropologia que possa estar mais perto, talvez a Antropologia da Amazônia possa se revolucionar”. Para ela, a presença indígena nas ciências significa mais que representação: é transformar a ciência pela vivência. “A gente deixa de ser objeto de pesquisa e passa para o outro lado, com nossos olhares, nossas contribuições, além do sistema que chamam de pesquisa”, ressalta.
Ciência para políticas públicas
Para Putira, a pesquisa genética não se resume ao mapeamento biológico, mas é ferramenta para políticas públicas. O projeto identificou mais de oito milhões de variações genéticas nunca antes registradas e destacou 450 genes associados a doenças como obesidade e problemas cardíacos. “A gente pode fomentar políticas públicas mais adequadas, entendendo como as transições culturais impactam a saúde dos povos”, explica.
Ela enfatiza que a genética não define a identidade indígena: “Quem diz quem eu sou enquanto povo Baré é o meu povo, a minha cultura. A genética não diz quem eu sou”. Para Sacuena, a Genética dialoga com a Antropologia, contribuindo para políticas de saúde e para contar a história evolutiva, mas jamais para determinar pertencimento.
A transversalidade da Antropologia
Putira defende que a Antropologia seja um campo transversal, fundamental para programas de saúde e educação. “Para falar de saúde, é preciso entender o contexto cultural daquele povo”, reforça. A sua atuação revela como o entrelaçamento entre Ciências Biológicas e Humanas é imprescindível para um entendimento mais completo das populações indígenas e para a formulação de políticas públicas eficazes.
A sua trajetória mostra que, com a presença indígena, a universidade e a ciência brasileiras deixam de ser apenas observadoras e passam a ser transformadas. “É preciso vivenciar junto aos povos, retornar com as pesquisas, transformar a universidade. Nós, indígenas, não somos mais só o objeto, somos sujeitos que pensam, pesquisam e transformam”, finaliza.
DNA mitocondrial
O chamado DNA mitocondrial é a chave para entender a formação do povo brasileiro. Os seres humanos possuem dois tipos de DNA. O mais conhecido, chamado DNA nuclear, é herdado de ambos os pais — metade do pai, metade da mãe — e determina a maior parte das características físicas e biológicas.
Por outro lado, existe o DNA mitocondrial, que fica dentro das mitocôndrias, as "usinas de energia" das células. Esse DNA é especial: ele é herdado exclusivamente da mãe. Isso acontece porque apenas o óvulo materno contribui com mitocôndrias para o embrião, enquanto o espermatozoide apenas transfere seu DNA nuclear. Assim, o DNA mitocondrial passa inalterado de mãe para filho, geração após geração, funcionando como um marcador ancestral direto da linhagem materna.
Essa herança permite traçar rotas de migração e história dos povos, como uma assinatura biológica transmitida ao longo dos séculos. Diferente do DNA nuclear, que é uma mistura de várias origens, o DNA mitocondrial revela a raiz profunda da nossa ancestralidade materna.
A pesquisa evidenciou uma maior proporção de ancestralidade indígena, especialmente na região Norte. De acordo com Putira, esse dado pode ser interpretado considerando o menor impacto do genocídio indígena na região amazônica, comparado ao Nordeste e Sudeste. Além disso, temos a presença marcante de mais de 500 quilombos no Estado, símbolo da resistência negra ao longo dos séculos, o que também aparece no nosso genoma.
Ancestralidade nas regiões brasileiras
No Norte, a ancestralidade indígena é a mais forte.
No Nordeste, predomina a ancestralidade africana.
No Sul, a maioria tem origem europeia, especialmente do sul da Europa.
No Centro-Oeste e Sudeste, há mais mistura entre indígenas, africanos e europeus.
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