Mais de 59 mil crimes contra mulheres foram registrados no Pará em 2025

Entre os três principais indicadores está a injúria, que muitas vezes esconde um preconceito ainda não criminalizado: a misoginia

O Liberal
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Foram registrados 59.093 crimes de violência contra a mulher no Pará, de janeiro a outubro de 2025. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), os principais indicadores são: ameaça, lesão corporal e injúria. Este último, frequentemente relacionado a ofensas verbais e humilhações motivadas por ódio ao gênero feminino, acaba sendo relatado para enquadrar um preconceito que ainda não foi criminalizado por lei: a misoginia.

Os dados da Segup computaram crimes diversos contra mulheres, incluindo violência física, psicológica, sexual e contra a honra. O levantamento aponta que em 2024, de janeiro a dezembro, foram feitas 71.706 ocorrências e em 2023, no mesmo intervalo, 72.866 casos. Conforme o órgão, quando se trata de prisões que envolvem crimes contra a mulher, foram registrados 4.807 casos em 2025; 5.530 autuações durante todo o ano de 2024; e 6.023 aprisionamentos em 2023.

Nesse contexto de preconceitos que ainda não são tipificados como crime, o combate à discriminação contra as mulheres pode ganhar um novo instrumento legal. Atualmente, o projeto de lei nacional (PL) 896/2023 propõe a inclusão da misoginia na Lei do Racismo. Apesar de ainda precisar da aprovação da Câmara dos Deputados, o PL passa a ser visto como um grande avanço jurídico. No Pará, representantes do Ministério Público (MPPA) e da Ordem dos Advogados (OAB-PA) analisam o impacto dessa criminalização para a garantia de igualdade e respeito às mulheres.

Misoginia

Para a promotora de Justiça Renata Valéria Pinto Cardoso, coordenadora do Núcleo de Proteção à Mulher do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), a medida é um marco jurídico e simbólico que consolida o reconhecimento do ódio contra mulheres como uma forma de discriminação estrutural.

“O Estado brasileiro reconhece que o ódio e a discriminação contra as mulheres possuem a mesma gravidade e estrutura sistêmica que o racismo. Essa inclusão reforça o caráter estrutural da desigualdade de gênero e a necessidade de enfrentá-la com o mesmo rigor penal e institucional”, destacou.

Com a equiparação, o crime de misoginia passa a ser imprescritível e inafiançável, ou seja, o agressor poderá ser responsabilizado a qualquer tempo e não terá direito a responder em liberdade mediante fiança. Segundo Renata, essa mudança tem também um caráter pedagógico, ao transmitir uma mensagem de intolerância ao ódio de gênero.

“A sociedade passa a compreender que o ódio contra mulheres não é mais tolerado. Essa resposta tem força simbólica e educativa”, afirmou.

Atualmente, condutas misóginas costumam ser enquadradas em tipos penais mais genéricos, como injúria ou difamação, o que invisibiliza a motivação discriminatória por trás de muitos crimes. A promotora explica que o novo enquadramento jurídico dá visibilidade a essas práticas e altera a forma de investigar e denunciar os casos.
Ela observa que, ao nomear o problema, o sistema de justiça passa a tratá-lo de maneira mais precisa:

“O ordenamento jurídico reconhece a misoginia como fenômeno específico, o que exige do sistema de justiça uma resposta mais qualificada e efetiva.”

Discriminação

Renata lembra que, até então, crimes motivados por ódio ao gênero feminino, especialmente fora do contexto doméstico, enfrentavam lacunas legais. O novo tipo penal, segundo ela, preenche esse vazio, permitindo o enquadramento de ataques virtuais, discursos de ódio e perseguições baseadas no gênero.

“A misoginia tipificada como crime autônomo fortalece a proteção das mulheres no espaço público e digital e amplia a capacidade do Ministério Público de agir de forma preventiva e repressiva”, explicou.

O Ministério Público do Pará já acompanha situações em que condutas misóginas não puderam ser formalmente enquadradas por falta de previsão legal, sobretudo em casos de ataques nas redes sociais. Com a nova tipificação, esses episódios poderão ser tratados de acordo com sua real motivação discriminatória, o que, segundo a promotora, “corrige uma assimetria histórica e dá mais coerência à resposta penal”.

Além do aspecto jurídico, a proposta tem um impacto cultural e educativo. Renata Valéria enfatiza que criminalizar a misoginia é também um passo civilizatório.

“A lei atua como instrumento de transformação social, ao reconhecer que práticas de inferiorização, ainda que simbólicas, são formas de violência. Isso ajuda a desnaturalizar comportamentos misóginos e promover uma cultura de respeito e equidade”, pontuou.

Avanço

Para acompanhar essa nova realidade jurídica, o MPPA já vem se estruturando. O Núcleo de Proteção à Mulher tem investido em formações, articulações institucionais e inovação, com projetos como ‘Justiça com Perspectiva de Gênero’, voltado à capacitação do corpo ministerial, e ‘Conexões de Equidade’, que promove o diálogo com a sociedade civil e universidades.
O órgão também coordena o Programa de Grupos Reflexivos para Homens Autores de Violência Doméstica, em consonância com diretrizes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), além de manter a Ouvidoria da Mulher, canal especializado de escuta e acolhimento.

“Nosso compromisso é construir um Ministério Público que não apenas puna, mas que eduque, acolha e transforme. Um MP com sensibilidade e coragem para enfrentar as raízes da misoginia em nossa sociedade”, concluiu a promotora.

Penas severas

A advogada Luci Alves, membro efetivo da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Pará (OAB-PA), disse que o reconhecimento da misoginia como crime determina que esse tipo de conduta será passível de penas mais severas. “Essa mudança vem se juntar ao arcabouço jurídico que já existe em proteção às mulheres, como as leis Maria da Penha, do Feminicídio e da Importunação Sexual. O reconhecimento traz aplicação de penas, que é o que falta. Essa aplicação protege mais as mulheres nos crimes de ódio, principalmente quando cometidos no ambiente digital”, disse ela.

Segundo ela, esse projeto de lei é necessário diante dos aumentos nos casos de violência contra a mulher, seja por ameaça, assédio, stalking ou então por divulgação de imagens íntimas sem consentimento, chamado de “revenge porn”, e até mesmo pela intimidação, humilhação e divulgação de informações falsas na internet.

“As mulheres precisam entender que existe a misoginia e que faz parte de um sistema de discriminação estrutural e histórico, não apenas resultado de comportamentos isolados, assim como o racismo. A misoginia deixa de ser uma simples conduta reprovável e passa a ser crime”, destacou.

Luta

Luci reforçou que essa luta contra o ódio à mulher deve ser participada por todos. “É inegável o papel da mulher na construção da sociedade e, quanto mais ela cresce, a violência aumenta. Por isso, são necessárias campanhas de orientações, principalmente na internet, e, inclusive, o apoio dos homens, que têm um papel de proteção da mulher e precisam assumi-lo”, afirmou.

Ela reforçou a importância do trabalho da OAB na defesa dos direitos das mulheres diante dessa mudança legislativa. “É importante que os advogados e advogadas acompanhem de perto essas alterações, para que possam dar o direcionamento e orientação às vítimas. A OAB-PA, por meio da Comissão das Mulheres e Advogadas, tem atuado em articulação com diversas instituições e organizações da sociedade civil para garantir a efetividade das políticas públicas. A participação ativa em conselhos estaduais e municipais, a colaboração com órgãos do sistema de justiça e a realização de formações permanentes fazem parte da estratégia da entidade. O acolhimento humanizado e a escuta qualificada são princípios centrais da atuação jurídica voltada às vítimas de violência”, relatou.

Preconceitos

De acordo com Luci, mesmo com as normas penais de proteção às mulheres que já existem na legislação, não há ainda uma resposta penal mais severa para injúria e discriminação em razão da misoginia. Por isso, ela enfatiza a importância desse PL. Mas ela lembrou que a Lei nº 7.716/1989, conhecida como Lei do Racismo, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, estabelece penas de reclusão que variam conforme a conduta, como 1 a 3 anos para praticar ou induzir discriminação (art. 20, caput) e 2 a 5 anos para crimes cometidos por meio da mídia (art. 20, § 2º).

“Além de prisão e multa, a lei prevê efeitos da condenação, como a perda do cargo público para um servidor ou a suspensão de estabelecimentos particulares por até três meses, ou outras penalidades aplicáveis a partir da análise de cada caso”, acrescentou. Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o texto segue para a Câmara dos Deputados, onde será analisado pelas comissões e pelo plenário.

Denúncia

Por fim, a advogada ressaltou que, em casos de violência contra a mulher, existem canais disponíveis para o recebimento de denúncias, como o Disque 180, Central de Atendimento à Mulher (24h); o 190, além dos números da Defensoria Pública (91 98411-8009), Ministério Público (91) 98871-2125 ou Centros de Referência da Mulher e serviços de assistência social municipais. Também é possível ir às Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) registrar um boletim de ocorrência.

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