Guerra na Ucrânia chega a dois meses de batalhas físicas e de narrativas

Rússia e ucranianos tentam dominar versões, mas os fatos acabam difundidos de formas diferentes no Ocidente e no Oriente

Eduardo Laviano

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia completa dois meses em meio a um choque de versões e permeada de batalhas digitais que se dão por meio de notícias na internet e defensores e críticos de ambos os lados. Desde o início do conflito armado em 24 de fevereiro, autoridades russas negam veementemente quase todas as acusações feitas contra os militares do país e desmentem derrotas e aviões abatidos, com forte controle midiático dentro do país comandado por Vladimir Putin. Mas o presidente russo tem quase nenhum apoio da comunidade internacional, que vê com desconfiança crescente os movimentos da Rússia tanto na diplomacia, quanto no fronte de guerra. Do outro lado, o presidente Volodymyr Zelensky segue com amplo acesso à mídia ocidental, entre entrevistas, encontros com líderes mundiais e até participações em premiações com o Oscar e o Grammy, quando relatou bombardeios contra um teatro que abrigava mais de mil civis e a explosão de uma maternidade que feriu e matou mulheres em trabalho de parto. A Rússia acusou a Ucrânia de contratar atrizes para encenar toda a história. 

As versões dissonantes que circulam pela imprensa mundial e as discordâncias públicas dos dois países sobre o acordo para o fim da guerra deixam mais distante a possibilidade de um cessar-fogo. Recentemente, as tentativas mais agressivas do exército russo de tomar Mariupol, cidade que no momento é o principal fronte de batalha, intensificou a crise. Kiev acusou Moscou de ordenar o ataque ao teatro que virou símbolo da resistência na cidade, enquanto o Ministério da Defesa da Rússia responsabilizou o Batalhão Azov, uma milícia ucraniana de extrema direita, pela ação, com suposto intuito de comover a comunidade internacional.

image Soldado ucraniano avalia veículo militar russo destruído (Foto: ANDREW MARIENKO/ASSOCIATED PRESS/AE)

O paraense Mário Tito é doutor em relações internacionais e conta que a guerra de informações é inerente a qualquer processo de guerra desde os primórdios da humanidade. Ele lembra que a mídia escrita transformou o cenário de como as guerras são contadas, já que o jornalismo, de modo geral, tende a se fortalecer, ganhando atenção, diante de situação de conflitos. Tito cita como exemplo o crescimento da rede americana de notícias CNN a partir da Guerra do Golfo. 

"Há uma relação forte entre a guerra em si e as narrativas sobre ela. Na sociedade tecnológica avançada em que vivemos , isso se tornou mais forte. Vai além da capacidade de produzir informações: há o enviesamento massificado da informação. Em especial, porque antes de ser um conflito entre os dois, ele tem interesses das potências econômicas vigentes. Elas apresentam o real significado da manipulação, com a imprensa americana e europeia contando tudo a partir da Ucrânia e com a imprensa russa e asiática trazendo um ponto de vista que parte da Rússia", diz.

Tragédia humana em cada esquina 

Não faltam episódios emblemáticos: ao menos oito pessoas morreram após um bombardeio em um shopping de Kiev, a capital ucraniana. Na ocasião, o Ministério da Defesa russo justificou a ação afirmando que áreas perto do centro comercial eram usadas para armazenar munições e recarregar lançadores de foguetes. O Exército ucraniano nega. No último dia 21,  Zelensky acusou a Rússia de preparar a organização de um referendo de independência nas regiões de Kherson e Zaporizhia, no sul da Ucrânia, que estão sob controle russo, e torná-las ao menos no papel repúblicas independentes, aos moldes do que ocorreu com Donetsk e Luhansk. O governo russo nega. 

image Bombardeios em Kiev, na Ucrânia (STATE EMERGENCY SERVICE OF UKRAINE / AFP)
Interesses locais e fake newsO acirramento dos ânimos transborda paraas redes sociais, o que levou especialistas a caracterizarem o conflito como uma "guerra híbrida", ou seja , que excede os armamentos convencionais e se transforma também em uma campanha de desinformação e ataques cibernéticos. A Rússia é considerada um dos países com maior poder ofensivo cibernético, com forte disseminação de conteúdo via redes sociais, com destaque para o Telegram. Já a Ucrânia é mundialmente famosa por ser um celeiro de hackers e tem apoio de grupos ciberativistas como o Anonymous, que cresceu após a anexação da Crimeia em 2014. Só no primeiro mês da guerra, a Ucrânia detectou três vezes mais ataques de hackers a sites ucranianos do que no mesmo período do ano passado, entre instituições governamentais, autoridades, operadoras de telecomunicações e meios de comunicação.

O poder que a sociedade contemporânea concedeu para as redes sociais tem feito autoridades globais baterem cabeça em relação ao equilíbrio entre combater as fake news e defender interesses locais. Em entrevista para a BBC, Abishur Prakash, autor de "O mundo é vertical: como a tecnologia está refazendo a globalização", afirmou que a guerra deve aprofundar a fragmentação da internet com regras cada vez mais específicas em cada país, com dois eixos de poder estabelecidos: o Ocidente x China e Rússia.  

"Devido à geopolítica, está surgindo um projeto diferente para a internet, no qual os países são cortados ou desenvolvem suas próprias alternativas. As pontes globais, como as plataformas de redes sociais, que possuem populações conectadas há décadas, estão sendo destruídas", afirma ele.

image Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, atrai simpatia do Ocidente (Sergei Supinsky / AFP)

Na opinião de Mário Tito, isso dificulta não só o encerramento do conflito, mas como eles serão julgados nas cortes internacionais após o hasteamento da bandeira branca. "É uma situação ainda mais complexa que a Segunda Guerra Mundial. Se por um lado, há acusação de matança generalizada por parte da Rússia, há a questão do armamento da população de maneira indiscriminada por grupos neonazistas, algo muito mais difícil do que houve em Nuremberg, quando você sabia claramente o país que passou dos limites e sem aparatos tecnológicos disparando versões diferentes sobre o mesmo fato", analisa. 

Entenda quem é quem na guerra entre Rússia e Ucrânia

Vladimir Putin 

O presidente da Rússia é um ex-agente da KGB, o serviço secreto da União Soviética, bloco socialista cuja dissolução em 1989 ele considera a maior tragédia moderna da humanidade. Prestes a completar 22 anos no cargo de chefe máximo do maior país do mundo, Putin afirma que a invasão ao país vizinho tem como objetivo desnazificar o território ucraniano e garantir que os países ocidentais mantenham distância segura da Rússia. 

Volodymir Zelensky 

Antes de ser figura carimbada em todos os jornais do mundo todos os dias, Zelensky era um ator. Ele ficou célebre pela série de comédia "Servo do Povo", sucesso da TV ucraniana na qual interpreta um professor revoltado com a política nacional e que após uma série de eventos inesperados, acaba virando chefe do executivo nacional. Desde o início do conflito, ele viu a própria popularidade disparar dentro e fora da Ucrânia e afirma de maneira reiterada que não há possibilidade de rendição.

Emmanuel Macron

O presidente francês é o principal intermediador do conflito e nos últimos dois meses se dedicou a reuniões com líderes de ambos os países, em busca de um entendimento mútuo que ele considera vital para uma Europa devastada economicamente após a pandemia de covid-19. A fatura, porém, chegou: Macron tenta a reeleição e admitiu para jornalistas que a guerra o tirou do foco da campanha, o que fortaleceu a candidata da extrema direita que ele enfrentará no segundo turno, Marine Le Pen. 

Olaf Scholz

O chanceler alemão quer seguir o legado de conciliação e pacificação da antecessora Angela Merkel, que deixou o cargo máximo do país após 16 anos no poder. Se por um lado Putin admirava e mantinha excelente diálogo com Merkel, Scholz ainda tem tateado espaços no debate internacional e buscado apoiar a política de recepção de refugiados, bem como as iniciativas de ajuda humanitária. Principal interessado na construção do gasoduto Nord Stream 2, Scholz afirmou em discurso nesta semana que sente "grande raiva" de Putin. 

Joe Biden

Putin e o presidente dos Estados Unidos da América nunca se deram bem. Durante a campanha para a Casa Branca, Biden chegou a chamar o presidente de "assassino" e o acusou de interferir na eleição para favorecer Donald Trump tanto em 2016 quanto em 2020. Desde então, ele tem capitaneado as iniciativas de exclusão da Rússia do cenário econômico e cultural a nível global, como sanções e banimentos que abrangem desde o sistema global de transferências bancárias até remoção de campeonatos esportivos. 

Xi Jin Ping

O presidente chinês é o único líder de expressão mundial a não condenar a Rússia pela invasão. Ele também é crítico das sanções econômicas sofridas pelo país, que é um aliado e, portanto, acabam impactando a economia chinesa. Recentemente, declarou que a China possui "uma parceira sem limites” com a Rússia, e que Moscou continua a ser o “principal parceiro estratégico” de Pequim globalmente. 

Sauli Niinistö

O presidente da Finlândia se viu pressionado por Putin após o russo engrossar o tom acerca de uma possível aproximação do país com a Organização do Tratado do Atlântico Norte, o que acendeu um alerta de possível invasão no país, que já enfrentou a Rússia em diversos conflitos ao longo da história. Passado a tensão, Niinistö tem ajudado o ocidente a entender a cabeça de Putin a partir de reuniões com o presidente russo. 

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