Atletas e ribeirinhos de Belém geram turismo e renda através da canoa polinésia

Atletas como Ricardo Boto se únem à moradores das ilhas da capital paraense para criação de roteiros turísticos que despertam interesse de cada vez mais pessoas.

Igor Wilson

Uma chuva fina e insistente cai sobre a madrugada de Belém. São cinco horas e a alvorada se aproxima lentamente do Rio Guamá. Ricardo Boto, atleta e fundador do clube de canoagem Marear, é o primeiro a chegar na marina localizada na avenida Bernardo Sayão. A água que cai do céu não parece o desencorajar, afinal, ela faz parte de Belém. Arruma coletes, checa os alunos que vão chegando e prepara cuidadosamente as duas canoas polinésias que levarão o grupo à mais uma manhã remando pelas águas da capital paraense. 

image Equipe rema pelo Furo da Paciência em direção a residência da família de Charles. Roteiros diários atraem novos adeptos do esporte. (Everaldo Nascimento/O Liberal)

Todos vieram por causa deste esporte aquático milenar, mas que chegou em Belém há cerca de dez anos e viveu um boom de procura durante a pandemia. São pessoas de vários perfis, que encontraram neste tipo de embarcação o auxílio para enfrentar males como sedentarismo, depressão, estresse e ansiedade. Remam coletivamente e em sincronia até a Ilha do Combu, onde serão recebidos pelos moradores locais. Há alguns anos, pessoas como Boto organizam atividades diárias desse tipo, movimentando o Turismo e a Economia regional.

O Pará e seus 1.200 Km de espaço costeiro parece propício a qualquer esporte na água, no entanto, entre os especialistas como Boto há uma unanimidade: falta ação do poder público para transformar o estado num celeiro de esportes aquáticos. “Nós não precisamos só de janelas para o rio, precisamos de portas, olha todo esse potencial”, diz Boto enquanto começa a remar na imensidão das águas do Rio Guamá.

Enquanto orienta as doze pessoas distribuídas nos dois cascos presos de forma paralela (são seis ocupantes em cada lado), Boto conta um pouco da sua história. Pratica esportes aquáticos desde a adolescência, virou engenheiro, trabalhou numa mineradora, mas um dia cansou e decidiu retomar sua relação com a água. Deixou o trabalho, teve uma filha e há cinco anos fundou o grupo de canoagem e dois projetos sociais, o Koru e o Apoena, voltados para jovens e PCD’s. Das águas do rio é de onde ganha seu pão e ajuda pessoas.

“Era uma vida acelerada, foi necessário viver um pico de estresse muito grande para decidir que não era aquilo que queria, mas sim outra coisa”, conta Boto, sem deixar de orientar os demais. A canoa atravessa o Rio Guamá e entra no Furo da Paciência em direção ao verde Combu. Os prédios de Belém vão ficando pequeninos, as ruas viram rios e o silêncio da mata fica grande. Apenas escuta-se o som dos remas n'água.

Polinésia/Amazônia: unidos pela água

image A canoa polinésia tem como peculiaridade um segundo casco que serve de estabilizador, permitindo que mantenha sua velocidade sem comprometer a sua estabilidade. (Everaldo Nascimento)

As canoas polinésias foram muito importantes para o processo de povoamento daquela região do Oceano Pacífico que fica distante mais de 10 mil quilômetros do Pará. Povo também íntimo com a água, as tribos que compunham a polinésia navegavam grandes distâncias oceano afora, pelo menos dois mil anos antes da chegada dos colonizadores europeus. E qualquer semelhança com as civilizações indígenas da era pré-colombiana pode não ser mera coincidência.

Existem estudos que comprovam que indígenas sul-americanos e polinésios se curzaram em jornadas transoceânicas por volta do ano 1.200, como atesta o DNA presente nas populações contemporâneas das duas regiões, revela uma pesquisa científica que envolveu universidades da Europa e da América e que foi divulgada no ano passado e publicada na revista Nature.

Não está claro se foram os habitantes do que é hoje Colômbia e Equador que navegaram em direção às pequenas ilhas da Polinésia no Pacífico, ou se foram os polinésios que empreenderam a viagem de ida e volta até a América do Sul, mas o estudo afirma que o encontro ocorreu vários séculos antes da chegada dos europeus às duas regiões. E se ocorreu, certamente a canoa polinésia também esteve presente no encontro.

“Temos semelhanças sim, além da conexão com a água, físicas. Ano passado fomos ao Taiti competir no Te Aito, eu e a remadora indígena Nanda Baniwa. Ela era constantemente confundida por eles como uma nativa de lá, sempre perguntavam de que ilha ela era”, conta Boto, em seguida falando sobre a conexão aquática que une os povos de ambos os lados.

“É um povo que está intimamente conectado com a água, assim como os ribeirinhos e indígenas daqui também. Tem muitas semelhanças físicas entre alguns indígenas daqui e dos deles. Então você tem uma canoa que atravessou o mundo, chegou na Amazônia e se adaptou muito bem. E agora o estudo vem comprovar que podemos ser parentes”, explica Boto, dizendo acreditar que os polinésios ocuparam primeiro a Ilha de Páscoa, em seguida navegando até o Chile, onde estabeleceu contato e misturou-se às civilizações Asteca, Inca e Maia.

O cortador de árvores que voltou à origem

image Legenda (Família de Charles. Ribeirinho era cortador de árvores e hoje trabalha recebendo turistas.)

Ao navegar por boa parte do Furo da Paciência, a equipe atraca as canoas polinésias (ou Va’a na linguagem polinésia) na palafita de Charles Gerson. O morador recebe a todos junto com sua esposa e três filhos. Os participantes são recebidos com um café da manhã, tem acesso a artesanatos feitos pela comunidade local e de quebra ainda podem desfrutar de um banho de cheiro para espantar os males, receita da família de Charles, que até pouco tempo ganhava a vida cortando árvores.

“Eu era desmatador, foi o pessoal desse esporte, como o Boto, que veio aqui fazer uma parceria, propor algo novo. Hoje larguei minha antiga profissão e vivo daqui, ainda ajudo a comunidade, pois gera renda para mais pessoas, do plantador das ervas ao de mandioca, o artesão”, conta, em seguida posicionando um recipiente com o banho para todos os canoeiros. Para Charles, trabalhar recebendo gente que quer apreciar a floresta foi um chamado dos ancestrais.

“Meu pai tinha um sítio em Acará, onde na época recebia muitos turistas interessados já em conhecer a Amazônia. Tenho boas memórias dessa época de criança, mas acabei virando desmatador e deixei de lado. Quando veio a possibilidade de me tornar um agente do turismo local, só pensei que era um chamado, estava voltando para o meu lugar”, conta, antes de iniciar a sessão de banho.

Águas de esperança

image Banho de cheiro oferecido por Charles é uma receita resgatada de seus ancestrais. (Everaldo Nascimento)

Antes de retornar, alguns dos membros da equipe mergulham nas águas do furo que leva ao Combu. Alguns vão contando suas experiências com o esporte, outros relatam como está sendo a primeira vez.

“Na água a gente se conecta com o que a gente realmente é. No trabalho nós temos que exercer uma persona, aqui não, você se conecta com sua essência, consegue conversar com a alma do mundo através da água, é tudo muito bonito, pra mim é igual comer, eu preciso disso”, diz o bancário Seido Chiba. Para ele, a canoa polinésia é uma metáfora da própria vida.

“Cada lugar da canoa tem uma função. Tem o que dá velocidade, o da contagem da mudança, que é como o cérebro, tem o que fica atento às mudanças de lado, o que fica no leme, que direciona a todos, incrível”, diz.

Para Roseane Costa, foi difícil aceitar o convite, mas quando aceitou, não parou mais. “Um grupo da academia veio, aí eu adorei. Não sabia nada, tinha só ouvido falar. Lembro que senti uma felicidade muito grande, sensação de me desconectar do mundo lá fora. Desde então uma ou duas vezes no mês eu venho remar”, conta.

Para Ricardo Boto, a proximidade de eventos como a COP 30, que colocam a Amazônia em destaque, dá esperança de que o esporte e o turismo se unam e se desenvolvam ainda mais na capital paraense. Atualmente, são cerca de dez grupos dedicados ao esporte em Belém. Para Boto, muito pouco diante do potencial aquático da cidade onde chove todo dia.

“Não é fácil, mas a própria população está se movimentando para fazer as coisas acontecerem. Temos o rio, o esporte, a comida, o carisma de nosso povo. Temos esperança de ver esse rio repleto de canoas, potencial de proporcionar uma experiência inesquecível nós temos”, diz, antes de ecoar o chamado, convocando a todos para remar de volta. Ainda chove. Água por cima e por baixo. Faça chuva ou faça sol, as canoas não podem parar.

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