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Sustentabilidade e rentabilidade: empreendedores apostam em produtos cultivados na Amazônia

Saberes tradicionais são beneficiados e geram emprego e renda para as comunidades da região

Natália Mello

Usar a biodiversidade e o saber dos povos tradicionais amazônicos como chave de transformação social é uma aposta recente de alguns empreendedores que residem em território paraense. Ou seja, deixa de ser suficiente o colocar dessa riqueza de raízes, sabores, crenças, sonoridades e muitas outras propriedades regionais em uma vitrine, e passa a ser necessário garantir a sobrevivência de quem garante a existência dessa floresta em pé: as pessoas.

Foi em meio a essa atmosfera de potencialização do olhar sobre as comunidades e da rentabilidade do que é produzido nela que surgiu a Manioca, em novembro de 2014. Mas o que começou com a abertura de uma estrada de acesso de alguns desses saberes à capital deu espaço a um projeto maior. Geleias, farinhas, tapiocas e diversos outros produtos derivados da mandioca e de gostos oriundos da floresta fazem parte dos produtos hoje disponíveis para a venda.

“Quando começamos, queríamos que as pessoas tivessem acesso à comida da Amazônia e isso não fosse considerado exótico. Provavelmente você tem azeite de oliva na sua casa, enquanto existem diversos produtos amazônicos que a gente não tem em casa. Então a ideia é levar esse produto não só até a mão de um chefe de cozinha, mas também para as pessoas, e contar a história dele a partir da nossa história de Amazônia, de tradição, de cultura. Hoje temos cerca de 20 produtos da biodiversidade da Amazônia. Mas vamos causar algum impacto com essa atividade e foi aí que optamos por outro caminho”, afirmou Paulo Reis, de 30 anos, desde 2016 sócio da empresa.

De acordo com Paulo, por esse trabalho ser feito com pequenos produtores – normalmente são famílias extrativistas da agricultura familiar, ribeirinhos ou grupos indígenas, por exemplo – a marca passou a se relacionar com as comunidades. “Ao trabalhar com eles, a gente tem uma escolha, ou a gente trabalha com eles e não liga para o que está acontecendo, e aí provavelmente o impacto será negativo, ou a gente trabalha com eles e a gente se importa. Então hoje são cerca de 40 famílias, em 10 municípios diferentes no Pará, associadas à nossa produção, fornecendo a matéria-prima que a gente utiliza”, declarou.

A Manioca criou, assim, um programa chamado “Raízes”, em 2017, que atua com três eixos principais: um olhar voltado para a renda que a empresa está gerando, eliminando atravessadores para garantir uma relação direta com a comunidade, o campo e a floresta; o monitoramento do impacto na área onde ocorrem as atividades – atualmente, a iniciativa tem cerca de 600 hectares em terras produtivas; e a assistência técnica, oferecida para todas as famílias que estão envolvidas. “Isso significa que a gente pode ajudá-los a profissionalizar suas atividades, para que isso inclusive possa representar uma renda maior, novos clientes ou que as próximas gerações se interessem por continuar essa atividade”, diz.

A primeira consequência desse trabalho, segundo Paulo, é indireta, e consiste em fazer as pessoas em geral terem conhecimento da Amazônia, passando a se envolver, se relacionar e estimar essa existência. Diretamente, outros dois pontos: o da geração de renda, proporcionando uma visão de valorização do passado de tradições e da atividade exercida no presente, mas sem deixar de vislumbrar um futuro – este último o mais importante na concepção dele.

“Queremos que eles se enxerguem daqui a 50 anos, após terem conseguido envolver as próximas gerações, se desenvolver, agregar tecnologia, inovar, mas sem perder de vista a tradição, a característica cultural, histórica, isso pra gente é o principal benefício”, diz. “E o melhor, enxergando outro futuro bom que não seja apenas atrelado à ideia de sair de onde ele está. Ao criar novos meios de sustento e desenvolvimento, a gente está incentivando que essa atividade continue, que as próximas gerações se interessem por ela e que haja até inovações, por exemplo, no exercício dessas atividades”, finaliza.

E é sob essa ótica que um dos parceiros da Manioca, Maurício da Silva, de 52 anos, de Santa Izabel do Pará, leva a vida no campo. Como ele mesmo diz, mesmo sem ser uma ocupação que dê para enricar, a atividade garante o sustento da família – ele vive com a esposa e o filho na colônia de São Sebastião – e, não menos importante, uma vida digna de trabalho e que pode ser rodeada de natureza.

“Eu nunca pensei em sair daqui, é uma colônia muito tranquila. Meu pai trabalhava com o cultivo de mandioca, sempre tirando a goma para fazer a farinha de tapioca, e quando ele morreu eu assumi. Hoje eu não trabalho mais com o cultivo, eu compro a fécula da farinha, que vem do Paraná, e faço a farinha para vender. Aí vendo para a Manioca, e vendo para a Feira da 25, em Belém. E planejo continuar a viver dessa atividade, não voltar a plantar a mandioca”, conta.

Maurício não pensa em voltar para o cultivo, muito embora o terreno da família, que mede 500 metros de largura por 480 metros de comprimento, esteja voltando, gradativamente, a ter uma mata saudável. “Como a terra ficou cansada, paramos de trabalhar com o cultivo da mandioca, mas agora o mato está ficando verdinho, está voltando ao normal”, pontuou. “Sempre nos mantivemos disso, o serviço é cansativo, mas dá para sobreviver, podemos (nos) vestir, ter lazer. Meus irmãos e sobrinhos devem trabalhar com isso agora, porque o ramo da nossa colônia é farinha de tapioca. E depois do contato com a Manioca, eu abri meus horizontes, recebemos orientações de manipulação de alimentos e várias outras coisas”, concluiu.

Cachaça mista produzida em Belém fortalece produtores em São Miguel do Guamá

Na década de 90, mais precisamente em 1994, o dono de um bar de bairro, localizado na Campina, em Belém, testava ingredientes regionais com cachaça como uma espécie de hobbie e promoção de experiências aos seus clientes. Quase 30 anos depois, a cachaça de jambu do alquimista Leo Porto deixou de ser uma vivência própria dos frequentadores do estabelecimento e alçou voos mais altos, deixando o estado do Pará em garrafas de 700ml.

Junto com o crescimento da marca e o fortalecimento do conceito de agregar valor às misturas alcoólicas com matérias-primas amazônicas, expandiu-se o alcance da proposta essencialmente urbana, que partiu para a produção em larga escala em São Miguel do Guamá e Castanhal. Quem ganhou com essa expansão? Os pequenos produtores de mandioca do primeiro município e uma parceira importante da fábrica de cachaças que produz licor no segundo.

“Hoje a fábrica impacta diretamente a vida das pessoas dessas comunidades. A cooperativa de agricultores familiares de São Miguel do Guamá ficou muito entusiasmada, porque praticamente todos já eram admiradores do produto, e poder ajudar a padronizar e qualificar essa produção de jambu deixou eles motivados. E a gente procura sempre trabalhar com o valor de mercado justo para que incentive eles a reinvestir o dinheiro”, afirmou Marcos Patrocínio, de 30 anos, gerente administrativo do empreendimento.

Hoje também presentes no bairro do Curuçambá, em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, os produtores de cachaça absorveram moradores da área para que trabalhassem juntos nesse projeto, que Marcos considera “um souvenir que compacta a experiência da cachaça para que possa ser transportada com o turista”. “Antes de chegarmos lá, era um galpão, e querendo ou não, com o fluxo de circulação maior, mudou a atmosfera do entorno”

Essências da floresta são levadas na mala de turistas

Única loja estilo gift shop de Belém, a matriz o Veropesinho fica dentro do Boulevard Shopping, mas o estabelecimento já conta com pontos em outros quatro pontos da rota turística gastronômica de Belém: Casa do Saulo, Restô do Porto, Aviú do Parque, Beto Salomão e Beiju Xica. À frente desse empreendimento há quatro anos, Manoel Netto decidiu construir uma ponte entre o saber e as essências dos povos tradicionais e o turista, hoje permitindo, com a parceria de 40 colaboradores, que o visitante da capital paraense carregue consigo um pedacinho do Pará, ao deixar o estado.

“É o único lugar da cidade que, a cada 10 atendimentos, 8 são turistas. Então nossa loja não é, de fato, voltada para o público de Belém”, disse Manoel. Começamos com uma política 100% colaborativa e hoje temos uma política mista, temos marcas que compramos produtos e outras trabalhamos de forma colaborativa, recebendo o produto, melhorando ele, e depois vendendo. Aí, em cima dessa venda, temos um percentual. Quando surgimos, foi uma ideia inovadora, porque Belém não tinha uma loja que abrisse espaço para empreendedores dentro de um shopping e, a cada dia, estamos pensando em trazer novidades para o público externo, que é o turista, e o público interno, que é o empreendedor”, destacou.

Um tripé cultural norteia a estratégia de atuação do Veropesinho: artesanato, religiosidade e gastronomia. “Belém é Cidade Criativa da Gastronomia, então temos, direto desses pequenos empreendedores, chocolates, geleias, bebidas, farinhas; e ainda produtos oriundos de uma curadoria de artesãos, desde os de Icoaraci até pessoas que fazem artesanato de produtos reciclados, e ainda as estampas de camisas estilizadas com frases tipicamente nossas; e temos ainda imagens de Nossa Senhora estilizadas também, de todos os tipos, e um diferencial, que são as promessas em cera, aqui é o único lugar que as pessoas podem encontrar esses objetos durante o ano todo, e compramos direto da São João, uma fábrica 100% feminina de 82 anos”, detalha.

O coração da Amazônia, produzido pelas mãos de diversos pequenos empreendedores, passou a poder ser levado nas malas dos turistas, e é por essa razão que Manoel segue trabalhando e pretende ainda expandir o círculo, dando braço a outros não pequenos, mas gigantes mantenedores da cultura amazônica. “Depois de muito estudo em cima do que o turista busca e gosta de levar na mala, firmamos esse tripé e estabelecemos nossas parcerias. Posso dizer que nunca dissemos não a nenhum empreendedor que nos procurou, e assim seguimos”, finaliza Manoel.

A advogada Brenda Jatene, de 45 anos, é de Belém e contraria a minoria do público local que frequenta a loja. Ela, que já comprou artigos de decoração e produtos de gênero alimentício, acredita que a loja oferece um pouquinho do Pará ao visitante. “É um pouquinho da nossa identidade e acho super importante, porque nós somos uma referência em gastronomia e a nossa cultura é muito rica, então a gente realmente precisa ter esses pontos de divulgação e venda e espaços em que circula muita gente”, ressalta.

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