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Pesquisador defende construção de alternativas para a sustentabilidade da Amazônia

Obras de infraestrutura nos últimos 50 anos são alvo de críticas, mas publicação propõe visão ampla do conceito

Fabrício Queiroz
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A construção de obras de infraestrutura na Amazônia nos últimos 50 anos é vista como um ponto crítico que levou ao avanço da devastação e dos conflitos na região. No entanto, no livro Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável (Elefante), o professor Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo, propõe uma visão mais ampla desse conceito, compreendendo as diversas dimensões da vida e das necessidades da Amazônia. Confira a entrevista.

Quando se trata da história da Amazônia se fala de um ciclo de grandes projetos. Na sua avaliação, o que as hidrelétricas, a abertura de estradas, portos e outras obras de infraestrutura representam para a região?

Este ciclo de grandes projetos tem início com a Transamazônica, com as políticas de incentivo fiscal da ditadura militar e, sobretudo, com a transformação da região numa espécie de almoxarifado (para usar a expressão de Simão Jatene) onde o Brasil buscaria energia, minérios e commodities a baixo custo. Quando isso começou, nos anos 1970, o desmatamento chegava a apenas 0,5% da Amazônia e o Pará, por exemplo, era a 7ª economia do país. Hoje o desmatamento na Amazônia já atinge algo como 20% e o PIB do Pará é o 23º do Brasil, apesar de sua pujança mineral. A Amazônia tem menos de 9% do PIB brasileiro, mas responde por 52% de suas emissões. Além disso, como mostram os trabalhos do Amazônia 2030, tem os piores indicadores sociais em termos de emprego, renda, saneamento, saúde, educação, conexão e mobilidade. A Amazônia precisa de infraestrutura, é claro. Mas a que foi implantada e está sendo planejada não beneficiou e não vai beneficiar a maioria dos que vivem na região. O crescimento econômico da Amazônia tem pés de barro não só pelo desmatamento a que está associado, mas pelo fato de não trazer emprego de qualidade para sua população e, sobretudo, para os mais jovens. A Amazônia dispõe de um bônus demográficos que está sendo jogado fora: o desemprego jovem é muito maior na região que no restante do País. A informalidade, por exemplo, é 20% maior que no restante do país.

Em seu mais recente livro o senhor propõe uma alternativa para se pensar na Amazônia enquanto infraestrutura. Como seria possível isso?

No mundo todo, a infraestrutura está deixando de ser a ossatura para se converter na inteligência do crescimento econômico. Não dá mais para planejar investimentos para atividades emissoras de gases de efeito estufa e destruidoras da biodiversidade, com o argumento de que depois isso será corrigido. Continuar nesta rota é assistir de braços cruzados a eventos extremos cada vez mais graves. É preciso mudar a visão sobre o que é infraestrutura. Na Amazônia há quatro dimensões fundamentais para esta mudança. A primeira é a consideração da floresta como a mais importante infraestrutura da qual dispõe o Brasil: é dela que depende nossa água, o equilíbrio climático e a diversidade biológica. Os povos da floresta devem ser respeitados como guardiões desta infraestrutura decisiva para a Amazônia, para o Brasil e para o mundo. A segunda é a infraestrutura da economia do cuidado, o que exige um plano de urgência para implantar organizações públicas e dispositivos inteligentes para atender às necessidades mais importantes da população. Isso não pode ser visto apenas como resultado do crescimento econômico. Exige políticas com metas claras e prazos determinados para atingir objetivos de redução da pobreza não só de renda, mas de educação, formação profissional, saúde e gente qualificada para cuidar disso. A terceira é a infraestrutura material voltada às pessoas e suas atividades econômicas: internet de qualidade, dispositivos de beneficiamento local para permitir que produtos da coleta e da pesca cheguem aos mercados com boa qualidade, supressão do diesel da matriz de mobilidade nos rios da Amazônia, energias renováveis modernas e assim por diante. A quarta dimensão é imaterial: ela se refere tanto a marcas de qualidade como o “Selo Origens Brasil”, que certifica produtos de áreas protegidas, como também à capacitação de atores locais para facilitar negócios. Estas quatro dimensões não se restringem à floresta. As cidades precisam ter sua infraestrutura inspirada na ideia de “soluções baseadas na natureza”, com arborização generalizada, agricultura urbana e respeito aos povos ribeirinhos e suas atividades. E a própria agropecuária de médio e grande porte precisa da infraestrutura necessária a sua sustentabilidade e isso passa tanto pela valorização da biodiversidade nos estabelecimentos agropecuários, como pelo aproveitamento dos rejeitos da produção agropecuária: os potenciais do esterco bovino para a produção de biofertilizantes e biogás são imensos.

Em termos práticos, que inovações essa perspectiva traz para o modelo de desenvolvimento em voga?

Cada uma destas quatro dimensões tem efeitos práticos sobre atores privados, associativos e sobre o poder público. A infraestrutura da economia do cuidado, por exemplo, tem que encarar o fato de que nos países da OCDE, 42% dos jovens passam por ensino profissionalizante. Na Amazônia, como mostram os dados do Amazônia 2030, este total é de 2%. E as inúmeras iniciativas que hoje se multiplicam na Amazônia, para o estímulo ao empreendedorismo, revelam uma demanda imensa dos jovens para iniciativas voltadas à valorização da biodiversidade. Mas como pensar o uso sustentável da floresta e dos rios com uma formação técnica tão precária como a atual? Abordar a floresta e os povos que nela habitam não só como recurso, mas como um valor ético-normativo, como responsabilidade de todos os brasileiros abre caminhos promissores não só pelo uso das riquezas nela contida, mas na relação do Brasil com o mundo. O potencial de investimentos brasileiros e globais nesta direção são imensos. As atividades agroflorestais e a agrobiodiversidade que já é praticada por tantos agricultores familiares na Amazônia também são rotas para um modelo de agricultura muito promissor.

Que impactos essa perspectiva traria para o desenvolvimento sustentável da região?

O desenvolvimento sustentável da Amazônia não consiste apenas em manter a floresta e seus rios como uma redoma protegida num ambiente generalizado de pobreza, criminalidade e destruição. A base do desenvolvimento sustentável é, evidentemente, a natureza, aquilo que ela nos fornece, os oceanos, os rios, a floresta, o clima, o solo, a atmosfera. É sobre esta base que repousa a organização social e, portanto, as aspirações de paz, de eliminação das diferentes formas de discriminação, de justiça, de cultura, de respeito, de diversidade e de luta contra as desigualdades. E a organização social depende da vida econômica, ou seja, de inovações de cidades sustentáveis e de produtos cuja oferta regenere aquilo que, até aqui, o sistema econômico vem destruindo. Este é um resumo da filosofia embutida nos dezessete objetivos do desenvolvimento sustentável. O potencial da Amazônia, neste sentido é imenso.

Que papel as populações locais, rurais ou urbanas, desempenhariam nesse modelo? E como promover o protagonismo dessas populações no debate sobre o desenvolvimento sustentável?

O maior risco existente hoje contra o planejamento de uma infraestrutura que seja a inteligência do crescimento econômico é a pulverização dos recursos trazido pelos poderes clientelistas locais ampliados pelas práticas de orçamento secreto, emendas de relator e a transferência direta de recursos aos municípios sem o menor respaldo técnico. Os povos da floresta, as populações urbanas e rurais não podem ser objetos, beneficiários de ações supostamente benemérita que raramente melhoram sua qualidade de vida. Eles têm que ser protagonistas do planejamento da infraestrutura. E isso se faz por meio de organizações da sociedade civil e representações as mais variadas que, na Amazônia, felizmente, estão cada vez mais preparadas para discutir criticamente e propor caminhos para projetos em diferentes territórios. As representações parlamentares são, evidentemente, legítimas, mas sem interagir de forma construtiva com estas organizações, elas acabam cultivando os piores vícios, ou seja, o clientelismo e o patrimonialismo que respondem pelo atraso socioambiental que marca a Amazônia hoje.

 

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