Artistas independentes de Belém acumulam vários empregos

Auxílio do governo por meio de editais de cultura trouxe suspiro para o setor que foi fortemente abalado pela pandemia

Eduardo Laviano
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Trabalhadores de todos os setores da economia foram afetados pela pandemia de covid-19 e com os artistas não foi diferente.

Segundo o Escritório de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais, a média de shows cancelados no Brasil desde março de 2020 foi de 6.000 apresentações por mês.

Sem a possibilidades de performances presenciais e com bares fechados por longos meses, muitos deles precisaram recorrer à criatividade, mas dessa vez não para se expressar, e sim para garantir uma renda extra.

A rapper Nic Dias foi uma delas. Ela é moradora da Terra Firme e tem 22 anos. Estava explodindo e ganhando nome na cena musical de Belém antes da pandemia e foi surpreendida pelo cancelamento de vários eventos em 2020.

Desde então, se aventurou por diversos negócios, passando de bazar virtual até o atual empreendimento, que ela divide com a cunhada: a venda de chopps e doces. 

"Se chama Delícia Gelada Gourmet. Aproveito as duas coisas, né? Uso a minha imagem como artista para impulsionar as vendas. Tive de procurar outros meios de sobreviver sem impactar tanto meu trabalho principal, a música. Se eu fosse trabalhar de carteira assinada seria difícil trabalhar conciliar. Então tive que buscar alternativas para empreender mesmo, pois moro em Icoaraci, e é difícil morar longe do centro, na periferia, difícil conseguir emprego. Na verdade, é difícil ser artista no Brasil", conta.

Nic começou ainda adolescente na música, inspirada por familiares de veia artística, como o irmão DJ e grupos de samba de parentes menos próximos.

Como boa parte das mulheres brasileiras, ela muito cedo notou que precisaria se desdobrar em muitas para ser multitarefa e realizar os próprios sonhos. Ela lembra que a tarefa é difícil.

"Já vi muitas pessoas desistirem dos seus sonhos pela questão financeira, pois ela implica no nosso bem-estar, na nossa saúde mental. A gente adoece quando a gente não tem dinheiro, pois precisamos pagar contas, achamos que não vai dar. Ficamos desestabilizados e isso abre precedente para adoecermos fisicamente também. Temos que aliar tempo com outras coisas e também tendo que se dedicar às artes, criar. Criar leva tempo, disposição. A vida vira um malabarismo", avalia. 

Ainda não está dando para viver só da música, mas Nic não dá nenhum sinal de desânimo. Isso tem motivo: foi a partir da arte que ela conseguiu finalmente se entender e se ver como ela mesma.

O sentimento está na letra da canção 'Degrau', no verso "em pranto e desespero, orando de joelho, abri o olho, enxerguei Deus quando me olhei no espelho".

"Não reclamo muito pois a gente tem mesmo que ficar aprendendo novas coisas o tempo inteiro. É difícil, sempre um corre atrás do outro, mas eu também tenho muito orgulho disso, sabe? De ter  22 anos e fazer um monte de coisas, me virar. Porque foi o que a vida me pediu, para que eu sobrevivesse", afirma.

Como não há trabalho que fique sem recompensa, Nic Dias lançou em julho de 2021 o EP intitulado '1999', com seis músicas da autoria dela e parcerias com Michel Zumbi, Erick Di e Navi Beatz.

A obra trata dos últimos dois anos na vida de Nic. A produção do disco só foi possível a partir da captação de recursos via Lei Aldir Blanc, para a qual ela submeteu o trabalho no período da pandemia. 

"Sem esse recurso seria impossível. Aqui em Belém, sem esse tipo de apoio fica difícil profissionalizar o teu trabalho. É importante que a sociedade em geral entenda como é difícil a correria do artista independente no Pará, pois gira toda uma cadeia econômica, com muitos profissionais. Queria que as pessoas olhassem com mais carinho para os artistas locais, dessem mais valor. Vejo muito a galera dando atenção só para artistas de fora. Precisamos de apoio também", desabafa.

Onze da Silva faz parte da Velhos Cabanos, projeto musical que atravessa vivências e sonoridades de diversos artistas de Icoaraci, região que, como ele lembra, é muito rica culturalmente. 

"Uma região periférica e muitas vezes esquecida mas que possui reconhecidamente uma importância cultural bastante vasta e uma produção artística própria que vão desde o artesanato marajoara produzido na feira do Paracuri, passando pela forte tradição de contação de estórias, as dezenas de mestres que vivem a cultura do carimbó", diz.

Onze relata que apesar de toda a cultura do distrito, as oportunidades são poucas para os jovens que moram na região, especialmente para os artistas. Os perrengues de quem produz cultura diante de tanta desvalorização são retratados na canção 'Cores', lançamento mais recente da banda. 

Assim como Nic Dias, Onze precisou driblar as dificuldades longe do exercício do próprio talento artístico. Ele conta que produzir música no Brasil é até um luxo, considerando como os equipamentos são caros, além dos outros custos de produção. 

"Infelizmente quando falamos de artista independente, é exceção quem vive apenas de arte. A gente vive pela arte, mas não vive da própria arte. Passei uns períodos trabalhando como cozinheiro em um restaurante, fiz entregas de delivery, tive que me virar", conta.

Para ele, a pandemia veio para mostrar a importância de apoiar os artistas com políticas públicas, movimentando a economia local. A Velhos Cabanos conseguiu ser contemplada pela Lei Aldir Blanc, o que possibilitou a gravação de um single e um clipe, para a música 'Cores', lançado no dia 7 de setembro. 

"Isso significa que o recurso circulou e contribuiu com a renda de dezenas de artistas envolvidos na equipe do projeto. Os artistas sempre foram o farol para as questões históricas da sociedade, com a chegada da pandemia não foi diferente, os artistas foram os primeiros a cessar suas atividades e são os últimos a retomá-las", avalia, que espera um avanço mais consistente da vacinação para retornar aos concertos presenciais ainda esse ano. 

Gustavo Aguiar é jornalista e produtor cultural. Ele é especializado no tema e avalia que 2022 ainda reserva muitos desafios para os artistas, já que tudo é incerto sobre o futuro da pandemia e, por conseguinte, das restrições acerca dela.

Ele argumenta que há diferentes nichos de artistas no Pará. Isso significa que os fazedores de arte do estado possuem meios diferentes de garantir recursos, bem como dificuldades diferentes para manter a produção ativa. 

"O nicho do tecnobrega e da cultura periférica tem um ciclo de produção próprio que permite a artistas se sustentarem. Tem o setor de cultura regional com artistas que ocupam esses espaços, bares e afins. Quem faz cover também trabalha muito. A galera não para, batalha todo dia. Às vezes fazem três shows em uma noite. Essa galera já tá de volta, trabalhando para comer semana que vem, comer amanhã. Os artistas independentes, da arte no sentido mais puro, de artistas que apostam numa linguagem, proposta e processo específico, diferente só sobrevivem de incentivo governamental, editais e eventos e festivais específicos", explica. 

Apesar de tudo, ele vê a Lei Aldir Blanc como extremamente positiva para o setor. A lei concede benefícios para artistas de todo o Brasil, como uma espécie de auxílio emergencial considerando que a maioria deles estava impedido de trabalhar. 

"Nunca trabalhei tanto como nesse primeiro semestre. Deu um suspiro para todos os profissionais envolvidos na indústria artística. Pena que acabou. Agora precisamos de mais suspiros", afirma. 

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