Sobre as lembranças e histórias de Ary Souza

A despedida do repórter fotográfico de O Liberal, Ary Souza, que faleceu nesta segunda-feira (20). Após luta contra o câncer, Ary deixa legado para o fotojornalismo da região

Ismael Machado / Especial

Todo mundo do meio jornalístico em Belém, principalmente os que passaram pela redação de O Liberal, tem uma história para lembrar com o Ary Souza. Eu me enquadro nas duas situações. 

Eu tenho várias lembranças e histórias, como cantaria Renato, o Russo.

Poderia lembrar a vez em que pautados para cobrir a ocupação da Fazenda Taba pelo MST em Mosqueiro, eu e Ary decidimos entrar pelos ‘fundos’ da fazenda, já que não estava sendo permitida a entrada da imprensa pela ‘frente’. Andamos pra caramba no meio de um sol daqueles e entramos realmente pelo lado oposto de onde estavam aglomerados todos. Deparamos com um grupo de mulheres lavando roupas e tomando banho num igarapé. E fomos ‘detidos’ pela ‘segurança’ da ocupação. Ary, protegendo seu instrumento de trabalho. Quem nos aliviou a barra foi uma repórter da TV Liberal, que tinha o sobrenome Brasil. Acho que era Jaqueline Brasil, mas a memória me foge. Sei depois que ela foi trabalhar em Brasília na TV Senado. 

Poderia lembrar outra vez em que decidimos entrar pelos fundos (que mania!) do Lixão do Aurá. E que fomos atravessar um pequeno córrego de um salto. Me saí bem, mas Ary afundou no chorume. E eu primeiro resgatei a máquina fotográfica das mãos deles para depois esticar uma vara que o ajudasse a sair do atoleiro. Ary voltou imundo e fedendo pra redação do jornal. E foi imediatamente mandado embora, já que havia empesteado o ambiente.

Ou quem sabe quando fizemos uma reportagem sobre prostitutas de Belém. E uma delas falou sobre as antigas, já sem poder trabalhar, sem dinheiro, abandonadas. Ela morava pros lados do fim da Cidade Nova, tipo Curuçambá, algo assim. Fomos até a casa dela. Encontramos uma mulher alta, negra, que devia ter sido muito bonita na juventude. E ela, nos olhando, depois da entrevista, nos disse: posso não andar mais direito, mais ainda posso ficar deitada. Com jeitinho vocês conseguem. Dei um dinheiro a ela e saímos da casa, com o Ary tirando sarro de mim.

Poderia relatar a vez em que fomos fazer uma matéria pros lados de Marudá, numa vila pesqueira. E que Ary bebeu tanto depois que ficou intragável. E que eu e o motorista, irritadíssimos com ele, esperamos ele dormir (desmaiar, melhor dizendo), quebramos um ovo e espalhamos a clara vocês sabem onde...apenas para no dia seguinte, ele acordar desconfiado e nos dar de presente uma manhã de sarro, que ele levou na boa.

Ou ainda, de uma imagem registrada por ele no intervalo de uma pauta sobre uma passeata do MST em Belém à época do julgamento de Eldorado dos Carajás, quando Ary disse que iria bem ali, resolver um negócio. Foi, na verdade, tomar uma cervejinha na Feira do Açaí. Retornou meia hora depois empolgado com uma foto de um casal de noivos na feira. Ele fez uma sequência, desde um beijo até a subida do casal em um popopô em direção a uma das tantas ilhas que cercam Belém. Comprei meses depois a foto do casal de noivos simples, beijando-se no centro da feira. Ela ficou durante muito tempo exposta em salas de casas onde morei.

Guardo ainda na memória a expressão de medo e tensão de meu amigo Christian Schwartz, à época repórter da Veja em Belém, ao pegarmos uma carona no buggy do Ary já torto de tanto beber no meio de uma madrugada atravessando a avenida Nazaré. Chris repetiria sempre que aquela tinha sido uma experiência de vida.

Também repeti diversas vezes histórias contadas por esse fotógrafo, como a de um dos primeiros trabalhos que ele dizia ter tido, o de passar óleo no p** [órgão genital] de cavalos para que eles pudessem deflorar éguas sem causar muitos danos a elas. Ou de uma aventura sexual no início da juventude no interior de Macapá, numas férias, onde ele e a moça acabaram caindo numa retrete. O tesão acabou ali. Ou ele contando como um dia tentou dar umas dicas sobre abertura e luz para um fotógrafo careca que apareceu no acontecimento de Eldorado dos Carajás. Era Sebastião Salgado, ele soube depois.

Ary é um daqueles personagens que, por seu jeito folclórico, muitas vezes tenha sido relevado o imenso talento que possuía. Já pude, em mais de 25 anos de jornalismo, trabalhar com repórteres fotográficos da mais alta qualidade. Sem pestanejar, digo que Ary está em uma lista de cinco mais, como diria Rob, a personagem de Zoe Kravitz na série Alta Fidelidade.

Num domingo onde amanheci irritado com mais uma de tantas atrocidades da horda bolsonarista, foi de Valéria Nascimento que soube da gravidade da situação de Ary Souza. Encontrei com ele em setembro do ano passado, na mais recente ida minha a Belém. Conversamos uns cinco minutos ali ao lado do bosque. E como sempre, ele começou com a pergunta: ‘tás aonde?’, querendo saber em que jornal eu estaria trabalhando. Foi uma conversa rápida. Seguimos nossos caminhos. Dois meses depois eu veria a cara da indesejada bem de perto. Já totalmente recuperado, enfrentamos todos a pandemia da reflexão. 

Ary se vai no meio disso tudo, em uma manhã onde aqui onde moro o sol se revela bonito, depois de uma noite de chuva.

Adeus, companheiro. 

A gente segue.

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