Série 'Ângela Diniz' relembra feminicídio que levou a vítima ao banco dos réus

Nova produção explora a vida da socialite, seu assassinato e o impacto histórico do julgamento que a condenou

O Liberal com informações da AE

A série Ângela Diniz: Assassinada e Condenada estreia nesta quinta-feira, 13, na HBO Max, revisando um dos crimes mais impactantes do Brasil. Em 30 de dezembro de 1976, a socialite Ângela Diniz foi assassinada por seu namorado, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca, na Praia dos Ossos, em Armação de Búzios, Rio de Janeiro.

O crime, que consistiu em três tiros no rosto e um na nuca, abalou a sociedade. Três anos após sua morte, Ângela foi julgada em vida. O advogado de Doca defendeu a tese de "legítima defesa da honra", retratando a vítima como uma "mulher fatal, libertina e depravada", e o assassinato como um "gesto de desespero" do agressor.

A nova série, dirigida por Andrucha Waddington e estrelada por Marjorie Estiano, é uma adaptação direta do podcast "Praia dos Ossos", da Rádio Novelo, lançado em 2020. A produção revisita a vida de Ângela Diniz, seu assassinato e os dois julgamentos de Doca Street, que foram cruciais para o surgimento do movimento "quem ama não mata".

Adaptação do Podcast em Série

A série, com seis episódios, não omite a sensualidade e a complexidade de Ângela desde suas primeiras cenas. Sua decisão de se separar do então marido, Milton Villas Boas (interpretado por Thelmo Fernandes), custou-lhe a guarda dos três filhos e a levou do interior de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. A mudança ocorreu após o assassinato do caseiro José Avelino dos Santos, por Arthur Vale Mendes, de quem a socialite era amante. As circunstâncias exatas da morte do caseiro permanecem sem esclarecimento.

Os direitos de adaptação do podcast "Praia dos Ossos" foram adquiridos pela Conspiração Filmes antes mesmo de sua estreia. O diretor Andrucha Waddington explica que, diante da vasta documentação histórica, foi preciso fazer recortes. A série foca na vida de Ângela desde a separação de Milton até seu assassinato, apesar de tentarem iniciar no baile de debutante dela.

Waddington revela a escassez de registros audiovisuais da socialite, sendo a maior parte da documentação filmada da época os julgamentos de Doca, nos quais ela era "colocada no banco dos réus". Apenas um comercial de cartão de crédito com sua voz foi encontrado. A reconstituição do período e dos círculos sociais de Ângela foi baseada na pesquisa do podcast, cedida pela Rádio Novelo.

A produtora Renata Brandão, da Conspiração, destaca o diferencial da pesquisa, que incluiu o depoimento de mulheres não ouvidas anteriormente. Essa "rede de mulheres" é representada na série por personagens como a feminista Gilda Rabelo (Renata Gaspar), Lulu Prado (Camila Márdila) e Marion Laplace (Tóia Ferraz). Alguns perfis de amigas foram unificados para a adaptação.

Sobre a família, a série retrata apenas uma filha, Mariana (Maria Volpe), em vez das três que Ângela teve. Andrucha justificou a escolha para "preservar a família" e concentrar a narrativa na história da própria Ângela e no "circo" midiático em torno dela.

A Complexidade de Ângela na Tela

Marjorie Estiano, que interpreta Ângela Diniz, ressalta que a série ilumina o crime e seus desdobramentos, abraçando as contradições da personagem. O roteiro a apresenta em diversas fases da vida, mostrando sua complexidade em momentos com a filha, em conflitos e afeto com a mãe, e na vida social e sexual, assim como em sua fragilidade após a perda da guarda dos filhos.

A atriz mencionou que houve muita discussão com os roteiristas (Elena Soárez, Pedro Perazzo e Thais Tavares) para evitar idealizar ou romantizar a socialite. Os diálogos se estenderam à equipe de fotografia e ao diretor Fernando Young, buscando enquadramentos que retratassem a personagem em sua totalidade, sem simplificações.

A série evita posicionar o relacionamento de três meses com Doca Street como o foco central da vida de Ângela. O enredo explora uma multiplicidade de figuras e sentimentos que a cercavam, oferecendo uma visão mais ampla de sua trajetória. Marjorie Estiano expressou gratidão pela oportunidade de interpretar uma personagem tão "distinta", que a fez refletir sobre a liberdade e o conforto com a própria sexualidade.

Yara de Novaes, que interpreta Maria Diniz, mãe de Ângela, também buscou a multiplicidade para sua personagem. Uma foto da matriarca com um casaco de pele de tigresa sobre os ombros no enterro da filha a fez compreender a força e a dor da personagem, que "carregava a filha consigo" mesmo em meio ao desespero.

O Impacto da "Legítima Defesa da Honra"

A tese que levou Doca Street a uma pena de dois anos de prisão em 1979, nunca cumprida, foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) apenas em 2023. Essa tese defendia que a vítima teria provocado o réu ao "ferir a honra" dele, justificando o ato violento.

No Brasil, a "legítima defesa da honra" foi amplamente utilizada para absolver ou atenuar penas de homens que matavam mulheres por ciúmes ou raiva. Apesar da queda da tese, os índices de feminicídio continuam altos. O último Mapa da Segurança Pública, de junho deste ano, registrou que quatro mulheres são mortas por dia no País em contextos de violência doméstica, familiar ou por discriminação.

Emilio Dantas, intérprete de Doca Street, explica que sua abordagem do personagem foi simplificar, focando apenas no que importa para a história de Ângela: os três meses de relacionamento. Ele descreve Doca como "vazio", cheio de "códigos sociais e privilégios", mas sem profundidade humana.

Andrucha Waddington vê a série como uma oportunidade de trazer o debate sobre a violência contra a mulher para o século 21, incentivando a participação masculina. A escolha editorial foi não focar no momento do crime, mas no "circo" do julgamento televisionado, que será retratado no sexto episódio.

Renata Rezende, diretora de produção da Warner Bros. Discovery, afirma que a escolha de focar na vítima impede a espetacularização do agressor. O propósito da série é "acompanhar essa mulher e discutir a sociedade na qual estava inserida", além de analisar a defesa que a imprensa e a Justiça da época fizeram da situação.

A Ângela Diniz de Hoje e o Debate Atual

A história de Ângela Diniz, ambientada em um universo elitista da década de 1970, revela que a liberdade de então não era isenta de preconceitos. A série propõe uma reflexão sobre a persistência dessas características na sociedade atual.

Camila Márdila, que interpreta Lulu Prado, observa que sua personagem, uma socialite carioca, ganha consciência da posição da mulher a partir do assassinato da amiga. Ela reflete que os anos 70, com sua efervescência cultural, conviviam com a hipocrisia e os "códigos sociais" escondidos do machismo estrutural.

Thiago Lacerda, que vive o colunista Ibrahim Sued (quem cunhou o termo "Pantera de Minas"), compara os julgamentos da época com a atualidade. Ele nota que, enquanto antes havia chamadas ao vivo na delegacia, hoje crimes contra mulheres acontecem ao vivo em redes sociais, evidenciando que "o cerne da questão permanece, transformado para outro tempo".

Renata Gaspar, no papel da feminista Gilda, aponta os prós e contras da mídia atual. Embora a internet permita que casos de violência sejam expostos, ela também opina que Ângela Diniz, se exposta hoje, seria "massacrada" e julgada "pela roupa que usou ou pelo nude que posta", conforme completa Camila Márdila.

Mesmo com a representação de Ângela como "uma mulher humana, errante, desejante, absolutamente livre e fiel aos seus desejos", Renata Rezende acredita que "é muito possível que o olhar ainda seja um olhar de julgamento e de condenação" por parte do público.

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