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Com açúcar, afeto e longe da contemporaneidade: clássicos da MPB pedem revisão de posicionamentos

Caso de Chico Buarque é apenas mais um dentro da história contada por meio de músicas com discursos já não vistos como relevantes

Lucas Costa
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“Com açúcar, com afeto” foi definitivamente limada do repertório de Chico Buarque. No terceiro episódio da série “O canto livre de Nara Leão” (Globoplay), o considerado um dos maiores compositores da história do país, disse que não pretende mais cantar a faixa encomendada por Nara em 1967. O motivo principal é que a letra foi considerada machista, por falar de um casamento abusivo - na perspectiva da mulher - em que ela é abandonada no lar e ainda assim espera o marido com saudades.

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image Chico Buarque atende o movimento feminista e tira "Com açúcar, com afeto" do repertório
A música foi feita após um pedido de Nara Leão

O episódio reacendeu uma questão não muito antiga na história na música: sobre como envelhecem os clássicos, ou quais posicionamentos são necessários frente a letras que já não se encaixam exatamente na contemporaneidade. O caso de Chico Buarque vem de uma demanda progressista, mas há na história registros de canções que foram proibidas ou tiveram suas letras alteradas por diferentes motivos.

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“Nós temos na época do Estado Novo, por exemplo, há canções que faziam exaltação da malandragem no Rio de Janeiro, e que por conta da atuação do departamento de propaganda tiveram que ser alterados, para exaltar o trabalho. Depois, artistas da MPB surgida nos anos 60, também vão fazer composições que anos mais tarde vão ter uma ou outra alteração, às vezes por uma questão de um ponto de vista religioso, uma mudança de visão de mundo[...]. São obras que são criadas em contextos históricos diferentes”, explica o professor Maurício Costa, da Faculdade de História da UFPA.

O caso de Chico Buarque parte dele próprio, mas há casos recentes de outros clássicos que tiveram suas letras alteradas para versões “empoderadas” a partir de demandas espontâneas; como quando “Mulheres”, de Martinho da Vila, teve sua letra totalmente refeita em uma versão que se tornou um hino da luta feminista no Brasil. “Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade, não sou sua projeção, você é que se baste. Meu bem, amor amor assim quero longe de mim”, diz trecho do refrão adaptado.

As canções tanto de Chico quanto de Martinho se tornam desconfortáveis na contemporaneidade por caminharem para o lado oposto do feminismo. “Tem muito a ver com a temática da mulher sofredora no casamento, lá dos anos cinquenta, que era muito presente nos sambas, nos boleros, né? Nas canções da geração de cantores do rádio”, destaca Maurício, lembrando que, mesmo que tais canções reflitam visões históricas dos períodos em que foram compostas, é importante enxergar quais delas cabem no presente.

“É natural que aconteça, porque as obras de arte podem ser atualizadas. Embora o sentido delas original seja dotado de uma condição contemporânea do seu tempo”, explica Maurício, destacando ainda a característica perene de algumas canções. “A obra está aí por mais que ela seja alterada. Mas em linhas gerais, ela permanece. Então quando ela se torna desconfortável, é deixada de lado, esquecida, ocultada ou evitada de modo a não criar desconfortos maiores”, completa.

Entre essas canções que passaram a ser evitadas sem grandes anúncios estão composições como “Mulher indigesta”, de Noel Rosa, onde ele diz que uma mulher “merece um tijolo na testa”. Outro caso citado por Maurício é da famosa marchinha “O teu cabelo não nega”, de conteúdo racista.

Mas Chico Buarque não é o primeiro a renunciar a uma canção. Isso é comum entre artistas, seja porque se tratava de uma música cantada para alguém que já não faz mais sentido, seja pela atualização do discurso. Um caso recente foi da canção “A Carne”, famosa na voz de Elza Soares. Em seu último álbum de inéditas, “Planeta Fome” (2019), a artista revisita a composição atualizando a letra para um novo momento da luta antirracista, dizendo: “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça”.

Música do Pará em atualização

Na música do Pará há alguns casos, como quando Dona Onete canta: “se ele te bate, não manda prender ele, dá chá de tamaquaré pra ele”, em “Feitiço Caboclo”. Outro caso que teve grande repercussão foi de uma canção originalmente composta com o título “Criado Mudo”, um termo racista que viveu por muitos anos na indústria moveleira do país.

O caso ganhou repercussão quando a música foi regravada por Laís Cristo, em 2020. A composição é de 1999, de Bruno Benitez, e chegou a ser vencedora de um festival de música, em 2011. O compositor diz que entende a cobrança no caso da música. 

“Eu acho que a sociedade tem que se cobrar e tem que constantemente estar revendo realmente a sua conduta, os termos que ela usa, da que forma ela está tratando as pessoas. Eu acho isso que tem que ser um um processo realmente constante e isso é uma construção”, defende Benitez, que escreveu a música aos 16 anos, quando não tinha leitura sobre o sentido do termo.

“É importante a gente acompanhar esses movimentos, que eles são recentes e são mudanças que ocorrem de forma muito justa mas muito rápida, a gente tem que se esforçar para acompanhar. Quando a Laís grava isso agora em 2020, ela sofreu uma represália da mídia pelo termo, me procurou e eu disse: ‘olha, hoje tem uma leitura muito forte e muito correta de vários termos que a nossa sociedade normalizou mas que tem uma origem muito cruel, principalmente em relação a escravidão e a gente pode reverter isso’”, relembra.

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