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O.J.C. MORAIS

OCÉLIO DE JESÚS C. MORAIS

PhD em Direitos Humanos e Democracia pelo IGC da Faculdade de Direito Coimbra; Doutor em Direito Social (PUC/SP) e Mestre em Direito Constitucional (UFPA); Idealizador-fundador e 1º presidente da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cad. 01); Acadêmico perpétuo da Academia Paraense de Letras (Cad. 08), da Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cad. 18) e da Academia Paranaense de Jornalismo (Cad. 29) e escritor amazônida. Contato com o escritor pelo Instagram: @oceliojcmorais.escritor

Separar o joio do trigo na magistratura

Océlio de Morais

Essa crônica reflexiva é especialmente dedicada à data memorável de minha vida.  Hoje, com as dádivas e desígnios de Deus,  completo 25 anos de magistratura.

A posse ocorreu no dia 13 de dezembro de 1996 como juiz substituto, dia dedicado à veneração de Santa Luzia, a virgem e  mártir, que, no catolicismo,  tornou-se protetora da Visão, devido ao nome derivado do prefixo latino “lux”, que  em português  significa luz, cuja sensação é captada pelos olhos, a porta da alma.

Lucia de Siracusa (Itália), Luzia em Portguês, foi morta no ano  304 d.C por ordem do imperador romano Diocleciano, que tinha uma sanha incontrolável em exterminar todos os cristãos.

Em particular, é emblemática a data de minha posse, espiritualmente coincidente com o dia 13 de dezembro: para bem julgar, o magistrado precisa ter olhos de lince ou visão de águia. Precisa ver o problema e identificar  a solução onde as partes não a veem.

A visão de mundo do julgador é fundamental ao bom exercício de sua missão: pesquisa, analisa, estuda e decide processos. Em todos os sentidos, a visão (analítica) é essencial para saber separar, e bem separar, o joio do trigo no exercício da  magistratura. 

A visão das coisas imediatas, a visão da vida em perspectiva e a visão espiritual da condição humana não estão  separadas da arte de julgar. 

Na minha magistratura, neste um quarto de século, algo que sempre me estimula, é o permanente desafio de bem servir a Justiça, o que decorre do modo de ver as virtudes da Justiça.

Não é um desafio fácil. Qualquer magistrado sabe que a missão fundamental de respeitar e defender a Constituição e as leis é totalmente incompatível com as aparências glamourosas que a profissão, em si, possa passar. Ou com a prepotência e empáfia do poder que da magistratura  podem decorrer. 

O desafio de bem servir a Justiça (diga-se, bem servir a sociedade com decisões corretas e justas) quer dizer o seguinte: a Justiça não pode e não deve ser maculada  em suas virtudes cardeais por nenhum juiz. 

Por certo que a decisão correta e justa  nem sempre é aquela que a parte espera, mas deve ser aquela que soluciona o conflito sem conflito ético  entre o fato, a lei, as virtudes da Justiça e a independência funcional do juiz. 

A compreensão desse desafio, que o considero uma condição missionária, vai além da percepção superficial e aparente dos fatos. Mas está na perspectiva teleológica da Justiça, a qual, como o disse Montesquieu, a exige por sua própria condição ser a  “boca da verdade”.

Mas será que a Justiça é a “boca da verdade”? Isso depende: quando os fatos são relatados conforme a verdade, isso será possível. Por outro lado, se os fatos são falseados pelas partes, acabam por suprimir da Justiça o princípio de que deve ser “a boca da verdade”.

Então, pensem nessa hipótese comigo: se o juiz não respeita as virtudes cardeais da Justiça, qual seria o sentir dos magistrados se descobrissem que, na visão do povo, a Justiça “não é a boca da verdade?" Isso tem a ver com a forma como as pessoas veem e vivem  as coisas. Tem a ver com natureza humana. 

Um quarto de século de magistratura ensinou-me a ver e entender que a natureza humana é muito inconstante e volúvel, comparadamente às estações do tempo: cada estação tem uma beleza e finalidade específicas, cada uma produzindo suas próprias  consequências.

No âmbito dos processos judiciais, a natureza humana é cooperativa ou conflituosa; é ética ou antiética. A finalidade de cada processo demarca os humores das partes. 

Essa inconstância, que Aristóteles denominou de natureza humana ontologicamente variável, aponta para uma lição atual: os processos revelam dramas, dilemas, misérias e  carências  humanos. 

Julgando processos, também vive angústias e decepções neste quarto de século de magistratura.

Inúmeras vezes - também posso francamente confessar - já tive vontade de pendurar a toga, especialmente porque é dificílimo (mesmo ao juiz) efetivar uma decisão judicial num sistema de Justiça, cuja estrutura com incontáveis recursos  não favorece a razoável duração do processo e, com isso, alimenta uma tão antiga quanto atual verdade: a Justiça é morosa! 

Imaginem bem: se é decepcionante àquele que tem o direito, não tê-lo concretizado  pela Justiça, ao magistrado (que se coloca como servo da Justiça) é profundamente frustrante não poder concretizar sua própria decisão. 

Quando, em 1987, no segundo ano do curso de Direito, li o clássico “O Espírito das Leis”, de Barão e Brède e Montesquieu - o filósofo, magistrado, escritor e jurista Charles-Louis de Secondat, ou simplesmente  Montesquieu  -  duas máximas em particular prenderam muito minha atenção: uma, a  de que “a lei é ao mesmo tempo clarividente e cega” e que o magistrado “é a boca que pronuncia as palavras da lei (...) que não pode moderar nem sua força, nem seu rigor”.

À primeira vista, o senso comum sempre diz:  o juiz tem poder e tem a força da lei, por isso, pode tudo. 

A rigor, isso é bastante relativo, porque qualquer estudante minimamente interessado sabe  que nem sempre a lei é tão clarividente e cega. 

Basta ver que os tribunais judiciais precisam editar súmulas para explicar o sentido e o alcance das leis. E, com isso  - como já disse o ex-ministro do Supremo, Eros Grau,  na obra “Por que tenho medo dos juízes” - acabam criando suas próprias leis. 

Montesquieu descreveu o sistema de justiça francês do século XVII e criou a teoria da divisão dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). 

Ali lançou as  bases do iluminismo  moderno dos três poderes -  teoria que ainda nos tempo atuais prevalece, pelo menos em termos formais, por exemplo, na Constituição Federativa de 1988, pois declara que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si.

Ah, eis aqui outro ponto de conflito que meu quarto de século de magistratura vivenciou: o conflito de Estado, que também pode ser identificado como crise de identidade de poderes.

Legislativo e Executivo divergem, não em razão dos objetivos e metas programáticas necessárias à sociedade e previstas na Constituição, mas por questões meramente ideológicas, que objetivam o domínio do poder. E tudo acaba nas barras da Justiça. 

Então, já não é plenamente verdadeira a máxima montesquiana de que o juiz   é  “a boca que pronuncia as palavras da lei”. 

E por quê? Porque a hermenêutica jurídica pós-moderna - centrada nos princípios - abre a perspectiva também para um maior controle judicial em face do Legislativo e do Executivo.

Logo, isso decorre da própria filosofia do Direito, fato que permite  concluir que a  própria Constituição possui uma perspectiva variável -  perspectiva que pode ser assim compreendida a partir da filosofia de Aristóteles, lá na "Retórica": o direito convencional é variável, assim como o direito natural, porque a lei estabelecida para a sociedade dinâmica. 

Ter vivido esse quarto de século na magistratura trabalhista, tão variável quanto às leis e quanto à natureza humana, ratificou na minha condição existencial um princípio que adoto desde quando estudei Teologia: sempre fui um aprendiz do tempo. Esse princípio me ajuda a separar o joio do trigo no exercício da  magistratura. E me fortalece na missão de procurar bem servir a Justiça.

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação.

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