Como Sartre concebe a liberdade Océlio de Morais 29.03.22 9h09 Dentro da série “Humanismo – breve ensaios filosóficos sobre a liberdade”, que venho pesquisando e escrevendo, este é dedicado à liberdade no pensamento de um filósofo francês, que um dia disse que a condição humana está condenada à liberdade. Precisamente nas suas palavras: “O homem está condenado a ser livre". Seu pensamento filosófico sobre a liberdade percorre o absoluto e o concreto, porque tinha por base o concretismo existencial humano, à medida que é a razão consciente que escolhe e define as possibilidades daquilo que a pessoa pode ser – ideia que se opõe à predestinação da concepção religiosa. Para esse filósofo, a livre possibilidade da escolha é a condição (natural, existencial) da liberdade humana. Assim o meio acadêmico o conhece: Jean-Paul Sartre, o "símbolo do intelectual engajado”, o filósofo que expandiu a ideia de que “o existencialismo é um humanismo”, a partir de uma palestra que fez em 1946 intitulada “L'existentialisme est un humanisme”; mas, depois que se rendeu às ideias do seu compatriota e premiado filósofo francês Gabriel Marcel, considerado já em 1940 como defensor do “existencialismo cristão”, baseado na meditação da experiência humana, cuja reflexão busca explicar os dilemas da existência. Porém, a filosofia existencialista dos dois é bem distinta: Gabriel Marcel – opositor às ideias do denominado do "socratismo cristão" – adotou o “existencialismo cristão” nas perspectivas da liberdade e da intersubjetividade, à luz da fé, da esperança, da paz e do equilíbrio. Por outro lado, Sartre – adepto do ateísmo, do comunismo e do marxismo – procurou explicar a experiência humana a partir da própria existência do indivíduo, e não da sua essência, porque a existência precede à essência, por uma simples razão: o homem primeiro existe e somente depois se define enquanto pessoa, conforme defendia Sartre. O existencialismo concretista sartriano é encontrado nos livros “O ser e o nada” (1943), "O existencialismo é um humanismo" (1946), “Crítica da razão dialética” (1960). Diversas bibliográficas sobre Sartre relatam que, pelo conjunto da obra, no ano de 1964, ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura da Academia Sueca, mas o recusou, justificando publicamente que ''nenhum escritor pode ser transformado em instituição”. Aquela recusa à premiação é interpretada como um exemplo da liberdade de escolha inerente ao indivíduo. A liberdade concreta, em Sartre, o realça uma dualidade humana: a existência e a essência: “a existência precede à essência”, disse o filósofo, exaltando a liberdade individual do ser humano, considerada como ponto de partida à definição do que a pessoa será e do que fará (da própria vida). Para ele, as instituições da sociedade nascem, se desenvolvem, se mantêm ou se dissolvem em decorrência das possibilidades de escolhas dos indivíduos, conforme a gama de interesses dos indivíduos. Por certa medida, a ideia de liberdade individual, em Sartre, tem raízes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Essa Declaração reconheceu que o homem possui direitos "naturais e imprescritíveis", dentre outros, a liberdade – “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos (art. 1º) – e legou à humanidade o ideal de âmbito universal à liberdade, à igualdade e à fraternidade. A ideia de que “a existência precede à essência” é uma concepção filosófica também existente no direito natural, base das três condições essenciais à vida humana, por isso, indissociáveis: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Mas ao considerar que o existencialismo é incompatível com a ideia de que a pessoa possui “uma função pré-definida”, Sartre afasta a concepção de liberdade como um direito “sagrado” do homem. O filósofo francês pensou a liberdade individual associada à responsabilidade, considerando que, pelos resultados das escolhas, o homem que é livre também é “responsável por tudo que está à sua volta”. “Somos inteiramente responsáveis por nosso passado, nosso presente e nosso futuro”, escreveu na trilogia “Caminhos da Liberdade”, composta pelos livros-romances “A idade da razão” (1945), “Sursis” (1947) e “Com a morte na alma” (1949). Interpreta-se que o princípio da responsabilidade, que pode ser identificado a partir da concepção de que a pessoa é responsável por tudo que está à sua volta, projeta a seguinte ideia: a responsabilidade impõe limites às escolhas, porém, pela condição de sermos livres, a liberdade individual é tomada no sentido ontológico da existência da pessoa. A liberdade é um princípio de escolha responsável por toda a existência, porque, na filosofia sartriana, a pessoa em si, é responsável por todas suas decisões. Nisso reside o sentido da liberdade abstrata e absoluta, o que leva à explicação de que a autonomia de escolha é limitada pelas capacidades físicas da pessoa; contudo, também pode representar um estímulo para que a liberdade se torne realizável e concreta na vida prática. Por outras palavras: a liberdade de escolha está alinhada à liberdade de superação, na perspectiva de que as limitações físicas também motivam e estimulam o indivíduo a superar seus limites. Então, em Sartre, a liberdade como ideário abstrato, não se confunde como ideia divina, mas é explicada pela condição existencial da pessoa ser livre e como resultado da conquista. Por essa concepção, a liberdade é um direito natural (atrelado à existência ontologicamente livre), mas também é uma conquista que vai se aprimorando pelas escolhas responsáveis. As percepções sobre a liberdade abstrata e sobre a liberdade concreta definem o “homem histórico" sartriano – aquele Ser ontológico que busca encontrar, fazer e conquistar alguma coisa de sentido (para si) durante a existência e, assim, é entendido conjuntamente pela natureza de Ser (abstrato e absoluto) e pela realidade (concreta e envolvente). É nessa dual liberdade (abstrata e concreta) que a pessoa está “condenada” (atrelada) “a ser livre”. A expressão “condenado a ser livre” quer designar que o “Ser em si é o que é” – termo também utilizado por Sartre no livro “O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica” (1943) para explicar a liberdade – isto é, simultaneamente, a pessoa guarda em si a condição abstrata e absoluta de ser livre por sua própria natureza e, por isso, a liberdade natural “não pode negar-se a si mesma”. E ainda porque somente com a morte do indivíduo a liberdade de ser livre desaparece. A Ideia de liberdade abstrata e absoluta – enquanto perdurar a existência – é a mesma que a Declaração francesa adotou quando qualificou a liberdade como um direito natural e imprescritível, isto é, a liberdade é um inato direito existencial e, nesta qualidade, é “imprescritível”, porque adere ao indivíduo até a morte. A semelhança conceitual – entre a liberdade como direito natural e imprescritível da Declaração francesa e a liberdade abstrata e absoluta na filosofia sartriana – leva-me à seguinte afirmação: a liberdade em Sartre, não obstante procure explicá-la à luz da ontologia variável do Ser, adota raízes do direito natural, mas avança em relação aquela quando , na perspectiva filosófica, pensa a liberdade como uma qualidade, um valor ou um princípio inerente à vida e para toda a existência humana. Nesse particular – da liberdade individual como uma qualidade, um bem, um valor, um princípio inato da pessoa humana – comungo com o filósofo francês. Penso que a liberdade amplifica a dimensão humana. No entanto – entre o “concretismo existencialista” atrelado à razão na filosofia de Sartre sobre a liberdade e o “existencialismo cristão” sobre a liberdade na filosofia de Gabriel Marcel – penso que o “existencialismo cristão” se apresenta mais completo para explicar sentido existencial da liberdade humana. E por quê? Porque o “existencialismo cristão” explica a intersubjetividade (os dilemas e desafios humanos) da pessoa também à luz da fé e da esperança – virtudes teologais inerentes à espiritualidade das centenas de milhões de pessoas que crêem na liberdade espiritual e religiosa como um objetivo bem superior ao concretismo do existencialismo sartriano. Mas algo essencial do pensamento de Sartre sobre a liberdade precisa deve ser resgatado com urgência para a vida concreta: a liberdade natural “não pode negar-se a si mesma”. E concluo: E os órgãos de Estado devem respeitá-la como condição amplificadora da realização humana. _______________ ATENÇÃO: Em observância à Lei 9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação.. Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱 Palavras-chave colunas oceliodemorais COMPARTILHE ESSA NOTÍCIA Océlio de Morais . Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo! Oferecemos notícia e informação de graça, mas produzir conteúdo de qualidade não é. Os anúncios são uma forma de garantir a receita do portal e o pagamento dos profissionais envolvidos. Por favor, desative ou remova o bloqueador de anúncios do seu navegador para continuar sua navegação sem interrupções. Obrigado! 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