A magistratura, a filosofia e a poesia Océlio de Morais 12.10.21 10h40 O que têm em comum o poeta, filósofo e o magistrado? Aparentemente, e num primeiro impulso apressado, alguém diria que são três personagens que vivem mundos diferentes e o ar que respiram tem sabores também diferentes em termos de liberdade. É verdade, em parte. Mas, se bem observado, é possível identificar que são unidos pela arte: a arte de observar, a arte de pensar, a arte da fala, a arte da escrita. O conectivo dessas quatro artes é a liberdade em seu nível mais amplo. A liberdade é, da natureza humana, o maior valor. É tão essencial à vida humana que pode ser definida como a água, o ar, a terra, é o fogo, é a energia que define e move a natureza do ser. Pelo condão dessas quatro artes, dedico-me, sob uma perspectiva teleológica, à reflexão dessa crônica dentro da série especial quase um quarto de século de minha magistratura. Embora nem sempre percebamos, a arte de julgar é um constante exercício de liberdade, que se concretiza pela arte de pensar, pela arte da fala, pela arte da escrita. O poeta é um libertário do pensamento, porque exercita, luta e vive a liberdade na expressão da fala e da escrita É, assim, um artista, que cultua a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão e a liberdade da comunicação, as três rainhas da síntese humana. Para exemplificar, fiquei pensando num poema, dentre um universo deles, como paradigma para essa crônica. Um poema que - na arte de observar, de sentir, de falar e de escrever - possa de alguma forma apontar a liberdade como essência humana. Pensei num poema de Fernando Pessoa, aquele intitulado Liberdade, que inicia assim brincando com a liberdade de querer e não querer: “Ai que prazer, Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer!”. Mas, lembrei-me que poderia ser mais adequada à finalidade da crônica a “Teoria do fragmento poético”, onde o poeta, crítico literário e filósofo protuguês define que “A arte é a autoexpressão lutando para ser absoluta” e “sentir é criar, sentir e pensar sem ideias, e, por isso, sentir é compreender visto que o Universo não tem ideias”. “Sentir é criar” e “sentir é compreender” é precisamente a percepção da liberdade poética filosófica, perspetiva que, lá na Antiguidade grega, os filósofos Platão e Aristóteles - aquele, na obra República e, este, na Poética - tratam sobre a motivação ético-teológica entre a poesia e a filosofia, e sobre a racionalidade poética, respectivamente. O filósofo é um artífice do pensamento dialético e zetético - zetética relacionada à filosofia dos valores, naquele sentido aplicado pelo filósofo brasileiro, Tércio Sampaio Ferraz Jr,: “a investigação zetética tem como característica principal a abertura constante para o questionamento ou objeto em todas as direções”. Na República, Platão relaciona a palavra à poesia, a poesia à liberdade e à liberdade à justiça. Na compreensão do filósofo-discípulo de Sócrates, a poesia é uma espécie de revelação dos dramas humanos, onde a “palavra” que os descrevem “precisa concordar com o fato”. Isto é, a palavra falada ou escrita deve corresponder à verdade, porque, e ainda nas palavras de Platão, “a justiça é virtude e sabedoria”. Aristóteles disse que “a poesia constitui forma específica de racionalidade específica do pensamento e da expressão'' ou ainda “uma espécie de discursividade que corresponde à impressão de pensamento.” Essa é a síntese que Aristóteles, na Poética, apresenta: a racionalidade poética como ciência, porque exige “a discussão e compreensão" da arte poética como ciência: “A poesia requer entendimento do que seja a arte poética como ciência'', disse. Enquanto a filosofia e a poesia expressam o conceito de liberdade de forma ampla e aberta, a Justiça a analisa sob aspecto mais restritivo, à luz das normas sancionadoras de condutas. É por isso que, na percepção de Aristóteles - acerca disso já me referi noutra crônica - “A base da sociedade é a justiça”, enquanto que “o julgamento constitui a ordem da sociedade” e, desse modo, “o julgamento é a aplicação da justiça”. Observador e intérprete de seu tempo, Aristóteles dizia que “Os juízes decidem com base em suas próprias satisfações e ouvem com parcialidade, rendendo-se aos contendores em vez de julgá-los.” Era um crítico dos juízes parciais. A reflexão aristotélica me desafia a afirmar que, na nossa contemporaneidade, o magistrado - um observador das condutas humanas judicializadas - expressa suas decisões usando da interpretação ético-legal . Portanto, na perspectiva ontológica, a parcialidade sempre será incompatível com a arte de aplicar a justiça como base necessária da sociedade. É certo que cada sentença, bem no fundo, expõe os valores do magistrado - valores aqui tratados como perspectiva ética que devem bem servir a sociedade, à medida que o juiz sempre estar circunscrito à (sua) liberdade de consciência e ao valor (que dá) à liberdade de consciência, temas acerca dos quais, aliás, dediquei uma crônica filosófica no meu livro “Dos dilemas e da arte de julgar”, editado pela LTr, são Paulo, em 2008, do qual faço o seguinte excerto: O desafio do Juiz, na arte de julgar, é ser sempre independente. Isso é substancialmente relevante porque ultrapassa as condicionantes fronteiras do processo. E o coloca diante da sua própria consciência de julgar bem. E julgar de modo justo! O ato de julgar (ou a arte de julgar), aqui, pode ser traduzido na liberdade de consciência. Ou ainda no valor que é ele (o magistrado) dá (à sua) liberdade de consciência” (2008, p. 34). Isso significa que o juiz é prisioneiro de sua consciência, porque ele deve ser o primeiro vigilante ético de suas próprias decisões, sob pena de abusar da liberdade de julgar e, assim, subjugar as liberdades daqueles que confiam que a Justiça é a última guardiã dos direitos e dos regimes das liberdades. O filósofo, o poeta e o juiz - cada qual no âmbito de seus nichos - são observadores das condutas humanas, por isso também são responsáveis pela valoração das liberdades humanas, valores nobres e inerentes à dignidade humana. Essa crônica, então, pode ser encerrada com a seguinte assertiva ou hipótese afirmativa: enquanto a poesia tem a missão de “ser sal das coisas sem sabor, de rimar as coisas do amor'' (Das coisas humanas - poesias, 2020, p. 34) e a filosofia, a tarefa de expandir o pensamento em todas as direções possíveis do conhecimento para a maior expressão das liberdades, a Justiça não pode ser arte de subjugar, mas, sim, deve ser a arte por excelência de fazer Justiça. Por outras palavras, encerro com Plantão, visto que isso se aplica com maior propriedade ao magistrado: “Não importa o tamanho de seu poder, mas sim o que você faz com ele.” Parodiando: não importa o tamanho do poder do juiz, do desembargador, do corregedor ou do ministro: importa que o que cada faz com o poder que lhe é confiado em nome da Justiça como base da sociedade. ATENÇÃO: Em observância à Lei 9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação. Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱 Palavras-chave océlio de morais colunas COMPARTILHE ESSA NOTÍCIA Océlio de Morais . Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo! Oferecemos notícia e informação de graça, mas produzir conteúdo de qualidade não é. 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