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Por Marco Antônio Moreira

Coluna assinada pelo presidente da Associação dos Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), membro-fundador da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e membro da Academia Paraense de Ciências (APC). Doutor em Artes pelo PPGARTES/UFPA; Mestre em Artes pela UFPA. Professor de Cinema em várias instituições de ensino, coordenador-geral do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), crítico de cinema e pesquisador.

“Retratos Fantasmas” e a apreciação da memória

Marco Antonio Moreira

O cineasta Kleber Mendonça Filho solidificou seu prestígio junto à crítica especializada e ao público, por meio da realização de notáveis curtas-metragens, a exemplo de Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Recife Frio (2009), assim como dos longas-metragens O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) (com Juliano Dornelles). Essas obras emblemáticas capturam a essência do estilo distintivo do diretor, ao abordar narrativas que transpassam uma variedade de temas, incluindo questões sociais, políticas, de violência urbana e rural, bem como as complexidades humanas e a valorização da memória como uma referência que atravessa o tempo, do passado ao futuro.

Em sua mais recente obra cinematográfica, o documentário provocativo intitulado Retratos Fantasmas, o diretor desvenda uma abordagem estética singular, deixando uma marca indelével de autenticidade no panorama do cinema brasileiro. A partir de suas memórias e de uma reflexão profunda sobre suas vivências, decidindo compartilhá-las com o público, particularmente com os amantes do cinema, ele constrói um olhar delicadamente sensível sobre sua cidade natal: Recife.

O filme assume a narração direta do diretor, traçando diferentes fases de sua vida. Desde a época em que compartilhava sua residência com a família, passando por suas experiências como cidadão do Recife e os intricados aspectos do cotidiano do centro da cidade. A narrativa destaca, sobretudo, sua trajetória cinéfila, meticulosamente tecida nos cinemas de rua que frequentou e como esse cenário transformou-se, desaparecendo gradativamente, mas resistindo como uma lembrança vívida nas mentes das pessoas, para evitar tornar-se meros retratos fantasmas de um passado evocado.

Nestes três pilares temáticos, é inegável a presença constante da memória, que atua como o motor propulsor da sua jornada enquanto cidadão, moldando sua essência como artista e observador de ambos os mundos, o real (cidade, bairro, centro de Recife) e o fictício (cinema, cinemas de rua, filmes).

A visão poética do diretor aflora por meio das imagens e da narração, envolvendo o espectador em uma experiência que muitas vezes evoca paralelos com suas próprias memórias em variadas cidades e bairros. Afinal, cada um de nós trilha seu cotidiano de maneira singular, porém, não raramente, existem semelhanças, especialmente quando observamos atentamente as mudanças que ocorrem ao nosso redor. Os sons e imagens que permeiam nossa existência podem transformar-se em memórias perpétuas. É essa premissa que confere a Retratos Fantasmas sua essência dual - uma obra pessoal, mas também compartilhada. Ela recorda a construção de cidadanias diversas que, para muitos, engloba as mais variadas formas de apreciação cinematográfica, como a minha.

O filme me tocou profundamente em várias ocasiões, pois o diretor conseguiu transmitir sua paixão inegável pelo cinema, os queridos cinemas de rua, pelos filmes, personagens e até mesmo pelos funcionários - como o tocante retrato do projecionista Alexandre. Ao assistir, senti uma conexão forte, pois minha própria jornada cinéfila em Belém tem traços surpreendentemente semelhantes aos caminhos trilhados por Kleber em Recife. Como posso esquecer daquele impacto emocional que os cinemas de rua de Belém causaram em mim? Contudo, creio que muitos espectadores também encontrarão sua identidade refletida nesse filme. A abordagem nostálgica é inegável, mas ao mesmo tempo, o filme projeta uma visão para o futuro, sugerindo que as memórias vão além de simples recordações agradáveis. Elas têm o poder de nos impulsionar a sermos mais participativos e críticos em relação aos nossos cotidianos.

Retratos Fantasmas é uma obra repleta de cenas habilmente entrelaçadas pelo diretor, que captura a essência do passado e do presente de maneira magnífica. Um exemplo notável disso é a forma como o cineasta retrata os nomes dos filmes nas marquises dos cinemas de rua, utilizando imagens de diferentes épocas. A sua abordagem é verdadeiramente poética. Além disso, o filme apresenta a transformação do interior de uma sala de cinema de rua que encerrou suas atividades. O resultado é um vazio imagético, poético e palpável, que adquire um sentido belo e profundo por meio das memórias daqueles que frequentaram essas salas, como o próprio diretor. Em suma, é uma obra que vai além de uma simples representação do passado. Ela é uma celebração das memórias, um convite à reflexão e uma inspiração para que possamos viver mais plenamente nossos próprios cotidianos.

Sentimentos de saudade transbordam neste filme, revelando a perspectiva de Kleber sobre um tempo que já passou. Contudo, sua abordagem não é meramente nostálgica; ela carrega consigo uma crítica acerca do contexto social presente, que parece tentar apagar o que foi conquistado e realizado. Esta crítica é dirigida à falta de reconhecimento pela individualidade daqueles que não apenas transitam pelo mundo de forma invisível ou indiferente, mas que estão atentos e aptos a se transformarem em agentes de mudança através da expressão artística.

Retratos Fantasmas se ergue como uma tocante homenagem às memórias do próprio diretor, abraçando sua trajetória como cinéfilo, mas mais profundamente, como ser humano. A visão poética de Kleber, cuidadosamente dirigida à cidade de Recife, seus bairros, cinemas, ruas e habitantes, é avassaladoramente emocional. Ela estabelece uma conexão visceral com a história individual de cada espectador. O filme, com sua beleza incontestável e poder de comoção, atinge camadas profundas de sentimento. E o desfecho surreal, onde o próprio diretor ingressa em uma cena fictícia, é um estímulo que nos convida a perseverar na crença no poder dos sonhos e da esperança no CINEMA!

Expresso minha sincera gratidão a Kleber Mendonça Filho por ter criado esta obra tão marcante. Sem dúvida, Retratos Fantasmas figura entre os destaques do ano, pois é um notável filme que discute cinema, cinefilia, memórias, passado, presente e vida. É uma produção realizada por um verdadeiro apaixonado pela sétima arte, destinada a todos os cinéfilos do mundo.

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