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Reconhecimento fotográfico é cada vez mais questionado como prova

Levantamento das Defensorias Públicas do país mostra elevada taxa de absolvição por erros, muitos deles ligados ao racismo estrutural

Eduardo Laviano
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Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro reacendeu um debate que tem angariado cada vez mais holofotes no direito criminal brasileiro: a de que o reconhecimento fotográfico é uma prova frágil e responsável por produzir, em larga escala, acusações viciadas que reforçam o racismo estrutural no Brasil.

A pesquisa do órgão aponta que 80% dos réus absolvidos de acusações feitas com base na metodologia foram considerados inocentes após passarem, em média, um ano e dois meses presos. 

Enquanto oito a cada 10 acusados são posteriormente absolvidos, 96% desse total é composto por homens e 64% deles são pretos. 80% das ocorrências são por roubo.   

Sem previsão legal, a prática foi se tornando praxe no Brasil e hoje em dia é feita até mesmo por meio das redes sociais. Na opinião do advogado criminalista Diego Martins, trata-se de uma abertura para falhas em processos investigativos e que, infelizmente, se tornou rotineira.

"O que ocorre é que a vítima, muitas vezes assustada com o ocorrido, se vê diante de uma fotografia apresentada por uma autoridade policial e, imbuída de emoções ou falsas memórias, ela reconhece alguém. Mas aí, na frente do juiz, a vítima olha para o réu e diz que não era a pessoa", conta ele, que avalia que ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido uma postura de revisão dos métodos.

Em 2020, a Sexta Turma do STJ estabeleceu diretrizes para que o reconhecimento de pessoas possa ser considerado válido, após um habeas corpus a um homem acusado de roubo na cidade de Tubarão, em Santa Catarina.

O então relator ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que a não observância das formalidades legais para o reconhecimento leva à nulidade do ato. No voto, ele pontuou que não é mais admissível a jurisprudência considerar as normas legais sobre o assunto, previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, apenas uma mera "recomendação do legislador", passíveis de flexibilizações.

"Isso acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças", disse na ocasião. 

image Bruno Braga afirma que defensorias do país inteiram atuam para compilar dados sobre a questão (Divulgação)

O defensor público Bruno Braga acredita que o que falta no Brasil e no Pará é rigor técnico e cuidado na hora de colher provas. Ele conta que não é raro que vítimas sejam pressionadas ou induzidas a reconhecerem alguém, para dar celeridade a alguma investigação.

"O Código Penal prevê que várias pessoas com características similares devem ser perfiladas para que a pessoa possa indicar quem é o autor do crime. Na prática, às vezes a testemunha é apontada para uma única pessoa na delegacia. Geralmente uma pessoa que já está algemada ou com uniforme do sistema penal. Acaba havendo uma indução, no que a psicologia do testemunho chama de falsas memórias, ou seja, quando um enredo é construído para que alguém seja apontado", entende ele, ao lembrar que é comum que as vítimas não atendam as intimações judiciárias dos casos.

Racismo no Brasil

No dia 7 de maio de 2022, durante as investigações de uma chacina em Fortaleza, no Ceará, testemunhas foram conduzidas para uma delegacia de Polícia Civil e ao passarem pelo procedimento de reconhecimento fotográfico de suspeitos, se depararam com a imagem de um homem sorridente de 35 anos de idade, 1m83 de altura e com um brinco na orelha.

Tratava-se do ator estadunidense Michael B. Jordan, lançado ao estrelato no início dos anos 2000 pela série "The Wire" e atualmente notório no cinema pelas franquias "Pantera Negra" e "Creed". Jordan nunca esteve em Fortaleza, mas a presença dele no livro de suspeitos só reforça que a cor da pele é fator determinante na hora da aplicação do método. 

"É até indiscutível a gente pensar que há um viés racial para a questão. Se você ver os famosos livros de suspeitos nas delegacias, bem como em processos criminais, esses documentos são basicamente compostos por fotografias de pessoas negras.  Se colocam até foto de ator de Hollywood, qual o critério para a escolha dos suspeitos para mostrar para as vítimas? Temos que lutar contra isso", alerta Martins.

Braga corrobora com o opinião dele. Ele lembra que há outros fatores que comumente resultam em erros: o receito da vítima de que o crime reste impune caso ela não reconheça de imediata um suspeito e o fato de que muitas pessoas com passagens pela política, a maioria negras, fiquem marcadas como suspeitas de diversos crimes posteriores.

"Há uma espécie de etiquetamento penal. Aquela pessoa fica marcada para sempre por ter passagens pela polícia e isso invariavelmente recai em pessoas negras, pobres e periféricas. Nosso sistema acaba fomentando a marginalização de pessoas já marginalizadas normalmente, pelo não cumprimento de regras mínimas que as tornam clientes preferenciais de livros de suspeitos", reflete.

image Ator de Hollywood virou suspeito no Ceará (Divulgação)

O professor Aiala Colares, coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade do Estado do Pará, ressalta que é importante lembrar que não é de hoje que membros da população negra são taxados como criminosos em potencial.

"Isso é muito do racismo estrutural, no sentido de que as estruturas de poder reproduzem isso. Isso é fruto de uma estrutura racializada construída ao longo da historia brasileira na formação da nossa sociedade, que faz com que a população negra seja colocada em uma posição vulnerável e marginalizada, com os mais altos índices de criminalidade, desemprego e subemprego e violência, o que só reforça estereótipos e estimas negativos", diz.

Atualmente, um projeto de lei do senador Marcos do Val (Podemos/ES) aguarda designação do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.

A matéria, já aprovada no Senado, determina como obrigatória a presença, ao lado da pessoa que se pretende reconhecer, de ao menos duas pessoas que com ela guardem semelhança.

Além disso, o projeto pede que haja uma advertência à pessoa que faz o reconhecimento de que o autor do crime pode não estar presente. "É preciso que tenhamos em mente que para cada condenação injusta há, no mínimo, um verdadeiro criminoso que escapou da justiça", afirmou ele ao justificar o projeto. 

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