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Linchamento traz de volta a barbárie gratuita

Especialistas dizem que a prática revela uma sociedade violenta, descrença na lei e equívocos a respeito do que seja legítima defesa

Victor Furtado

O impulso de muitas pessoas é conter e punir quem comete um crime, uma reação que costuma sair do controle: pode virar agressão e terminar, às vezes, até em morte, o que caracteriza um linchamento. Durante a ditadura militar iniciada em 1964, cunhou-se o termo "justiçamento", uma prática que, para quem faz parte do sistema de segurança pública ou atua na área do Direito, é reflexo de uma sensação de impunidade e de descrença no poder judiciário. Trata-se de barbárie gratuita e retrocesso.

No último dia 11 de agosto, Reginaldo Brígida Belém foi linchado no bairro da Pratinha. Por razões ainda inexplicadas, ele teve um surto. Armou-se com uma faca e o gargalo de uma garrafa. Matou duas pessoas e deixou outras três feridas. Revoltados, moradores da área espancaram-no até a morte. Para a Polícia Civil, a tarefa de identificar os "justiceiros" é quase sempre difícil, pois agem em grupo e de forma muito rápida, com um tiro a distância ou execução seguida de fuga, sem que haja tempo de reconhecer o homicida ou quem incitou o linchamento.

A professora Eulina Maia, coordenadora do curso de Direito da Unama, reforça que linchamento é conduta criminosa, prevista no Código Penal Brasileiro e que, no caso da Pratinha e de outros linchamentos, não se aplica o conceito de legítima defesa, caracterizada por repelir uma agressão. Só que essa reação sempre deve ser proporcional e não pode haver excesso.

image Eulina Maia: conceito de legítima defesa não se aplica (Divulgação)

 

Quem participa de um linchamento, em grupo, não está livre de ter a ação individualizada e responsabilizada, afirma a professora, uma vez que sejam identificados os indivíduos. "Quem incentiva ou dirige as ações tem pena aumentada, de acordo com o Código Penal", explicou Eulina. "Antigamente, o indivíduo que cometia um crime, recebia como retribuição a mesma lesão causada (Código de Hamurabi / Lei de Talião), ou seja, não havia qualquer processo de defesa", acrescentou.

"O Brasil lutou para que hoje tivéssemos um Processo Penal Constitucional, permitindo a todos o direito de defesa, alicerçado nos princípios do contraditório e ampla defesa. Portanto, instigar tal comportamento de fazer justiça com as próprias mãos é punir de maneira desproporcional qualquer tipo de conduta".

O termo linchamento nasceu no século XVIII, com o coronel Charles Lynch. Ele reuniu uma milícia que criou um tribunal informal de tortura e homicídio, no estado da Virginia, Estados Unidos. Então foi criada a "Lei de Lynch". Quem era julgado culpado por qualquer crime que fosse, seria "lynched" (linchado). Mas já existia uma "lei" mais antiga e bem conhecida no senso comum, a Lei de Talião, que determina: "Olho por olho, dente por dente".

No Brasil, não existe pena de morte e ainda que muita gente queira, a Constituição Federal sequer prevê essa possibilidade. Quem se considera "justiceiro", que nada tem a ver com o anti-herói dos quadrinhos da Marvel, ao matar criminosos ou espancá-los, não está ajudando a polícia ou a justiça. Está cometendo outros crimes, que podem variar de lesão corporal a homicídio. Há, no artigo 345 do Código Penal Brasileiro, uma tipificação específica para a ideia de fazer justiça com as próprias mãos, mas essa tipificação implica em algo de menor gravidade. Lesão corporal grave ou homicídio continuam sendo os crimes de quem promove um espancamento ou linchamento.

Direito do cidadão só permite dar voz de prisão

O que está no artigo 301 do Código Penal Brasileiro é: qualquer cidadão pode dar voz de prisão a alguém flagrado cometendo algum crime. A observação é do delegado de Polícia Civil Walter Resende. Esse direito, que para a polícia é dever, qualquer pessoa tem. Mas ninguém tem o direito de agredir ou matar um criminoso, não importa o delito cometido.

Para Resende, o medo e a revolta ditam o tamanho da reação. Muitas vezes, quem participa do ataque ao acusado acaba se identificando com as vítimas. Prefere fazer algo para evitar que a vítima não seja a própria pessoa ou alguém próximo. Ou apenas é despertado um senso de coletividade e agressividade. "É uma atitude reprovável. Agressão por agressão não dá, muito menos morte por morte, ou morte por um delito menor. Muitas pessoas podem considerar que seja legítima defesa, mas não se trata disso. Analisamos pelo grau de intensidade da reação diante de um fato. Se uma pessoa reage a um assalto e dá um soco no assaltante e pede ajuda e rende a pessoa, ali a pessoa já está presa e o correto é chamar a polícia para conduzir ou conduzir direto para a delegacia, pelo direito que o Código Penal e a Constituição dão a qualquer cidadão de dar voz de prisão. Agora espancar, linchar ou atirar num acusado é outro crime e o acusado pode ser vítima e até fazer uma ocorrência", observa Resende.

image Walter Resende: medo e revolta ditam o tamanho da reação (Fábio Costa / Arquivo O Liberal)

 

Casos em que ocorrem linchamentos, para ele, têm um perigo posterior. Ele acredita que podem revelar a violência de algumas pessoas. E pode estimular outros casos. Em 2015, vários casos ocorreram em sequência. Esse tipo de fenômeno pode resultar na criação de milícias e de assassinos em série.

Ele já viu isso ocorrer, por experiência própria. De 1997 a 1999, Resende foi o superintendente de Paragominas. Foi nessa época que o município ganhou o apelido de "Paragobala", pela quantidade de assassinatos de supostos criminosos. "Mas tudo era pistolagem e o homicida passava de justiceiro a matador de aluguel. Esse é o perigo, pois a pessoa perde a noção da gravidade do que faz e a vida se torna algo qualquer e descartável", concluiu.

O sociólogo José de Souza Martins, que escreveu o livro "Linchamentos: a justiça popular no Brasil", estima, com base nas pesquisas dele, que haja pelo menos uma tentativa de linchamento por dia no Brasil. Tanto ele quanto os sociólogos Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Maria Victória Benevides, todos autores reconhecidos nacionalmente pelos estudos sobre a violência popular, são enfáticos em destacar que a descrença nas autoridades, medo e indignação são sentimentos irradiáveis.

Esses sentimentos descritos pelos autores, rapidamente se espalham e são proporcionais à sensação de insegurança e de aumento dos índices de criminalidade, restando ao grupo de "justiceiros" uma única ferramenta: mostrar, através de um exemplo de barbárie, sangue e desfiguração ou até morte, a reprovação ao crime. E assim, mostrar o que seria a consequência de cometer um delito na área em que ocorreu o espancamento ou linchamento.

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